Percorro a escola toda atrás de Bernardo. Ando apressada pelos corredores vazios, batendo de porta em porta, procurando por ele. Em cada sala que entro, vários rostos me encaram, alunos e professores. Sequer sei quem são, mesmo que sejam minha criação. Isso é tão estranho.
Bato na porta da sala de Álgebra e repito a mesma coisa que disse nas últimas dez classes por onde passei:
- Bom dia, professor! Mil perdões por interromper sua aula. O diretor está chamando Bernardo Berryblossom.
Bernardo levanta a cabeça e seu rosto se ilumina quando me vê. Olho ao redor. "Ótimo! Lina não está aqui!"
- Ah, sim – o professor diz, ajustando seus óculos redondos – pode ir.
Hector olha para mim, com uma expressão surpresa e confusa. Aceno e sorrio para ele.
Bernardo se levanta da sua carteira e me acompanha para fora da sala de aula. Passo 1: Verificar se Bernardo aceita que eu escreva mais capítulos sobre ele, para descobrir por que ele começou a gostar de Lina; Passo 2: Descobrir se Lina sente o mesmo por ele. Não posso forçar ela a gostar dele, porém, se ela já tiver sentimentos...
- Que bom que você voltou! – ele sorri.
Estou tão empolgada com a possibilidade desse ship, que meu sorriso deve estar parecendo uma careta. ''Disfarça''.
- Vamos tomar um café? – ofereço – deixa que eu pago.
- Você tem que pagar?! – Bernardo comenta surpreso – esse mundo é seu!
- Sim, ele funciona como a vida real. Tenho que pagar.
Saímos da escola, andamos duas ruas e entramos numa cafeteria do Moonbucks. Falo para Bernardo pegar um lugar para nós sentarmos e pergunto qual bebida ele quer, enquanto estou na fila.
Agora que voltei a escrever, esse mundo parece mais real ainda. Pessoas com seus notebooks, trabalhando; pedestres nas calçadas; carros nas ruas. Até o cheiro de café consigo sentir.
Peço dois frappuccinos de caramelo. Pego o dinheiro que está no bolso do meu uniforme e pago. O atendente me dá o troco e pede para que eu aguarde no balcão.
Um tempinho depois, ele me chama. Pego as bebidas e me sento na poltrona na frente de Bernardo. Entrego sua bebida e tomo um gole da minha. Tão bom quanto o mundo real! ''Será que eu pego um bolo red velvet? A cara dele tá maravilhosa!''.
- Aconteceu alguma coisa? – Ele pergunta preocupado.
- Não! – sorrio – Eu só queria te ver. O que achou do seu capítulo?
Seu rosto se suaviza. Deve ter achado estranho que eu o tenha tirado da sala de aula assim do nada.
- Eu gostei! Só achei um pouco estranho a sensação de estar sendo observado. Achei que era por causa do corredor cheio, mas, no final da noite, percebi que era você me acompanhando. Lina não acha isso estranho?
- Nain. Ela nasceu protagonista, por isso é imune a ''sensação de vigilância'' do autor.
- Faz sentido – Bernardo toma um gole do seu frappuccino – Deve ser meio enlouquecedor sentir isso o tempo todo.
Me recosto na poltrona e sento de perna-de-índio. Mais um cliente chega, pede alguma coisa, paga, e o ciclo de atendimento se segue. Olho para a vitrine de bolos, colocaram mais um lá. ''Será que eu peço um de cada?''.
- O que mais você gostou naquele dia?
Seu rosto fica vermelho e ele tenta disfarçar, tomando mais um gole da sua bebida.
- Almoçar com o pessoal no refeitório.
- Ah... – ''Será que ele não sabe o quanto dos pensamentos dele eu tenho acesso?'' – Aquilo foi bem legal! Hector e Emily são incríveis! Sou bem fã do Hector! Me tornei ainda mais quando ele deu uma lacrada no Zeke! Tão satisfatório, hehehe!
- Foi ele? – Bernardo franze o cenho, confuso – achei que tinha sido você quem fez ele dizer aquilo.
- Não... Eu não tenho poder sobre as atitudes de vocês.
Ele fica quieto, como se me pedisse para continuar. Junto as mãos.
- Eu não tenho poder nenhum sobre vocês – pausa para um gole nessa delícia de caramelo – só tenho poder de alterar o tempo, clima, estações do ano, e o curso da história. Porém, suas ações são algo que eu não tenho poder algum. Minha função nesse mundo é: criá-lo, definir o plot da história, quem são os personagens, e acompanhar o que vocês fazem.
- Hm...
- Pense em mim como um mestre de RPG. Lembra do Halloween?
- Sim.
- Lembra da sua briga com o Zeke?
Ele faz ''sim'' com a cabeça, envergonhado.
- Você tinha várias opções, entre elas: chamar um professor e falar ''olha, Zeke está ameaçando Lina, preciso que vocês tomem providência'', ou não seguir Zeke e ligar para o telefone de Lina (o que eu acho que seria beeeeem mais inteligente, mas enfim). Nenhuma delas envolvia sair no soco com ele e acabar trancado naquela sala. Aquilo me machucou de um jeito que você não tem noção.... Enfim! Deu pra entender que eu não posso controlar vocês? Eu jogo a situação e vocês têm o livre arbítrio de agirem como acharem melhor ou seguindo seus instintos e sentimentos.
- Deu pra entender.
Ele se recosta no sofá, cruzando as pernas como eu.
- Quero propor uma coisa – digo – você me permite que eu escreva mais pontos de vista seus?
- Claro! – ele sorri, feliz – estava pensando em te pedir isso, mas não sabia como! De certa forma... Foi reconfortante sentir você por perto.
- Fico feliz por saber! Ah! – me levanto – vou pegar bolo pra gente.
Vou ao balcão e peço uma fatia de red velvet, uma de limão, e duas colheres. Pago e volto para meu lugar. Divido as fatias, metade para mim, metade para Bernardo.
- Eu tô matando aula por sua culpa – ele finge desaprovar – Isso não é nada bom para mim.
- E você nem fica vermelho por fingir que não gostou! – retruco e rio – não tem problema, depois Lina te ensina. – Resisto ao impulso de provocá-lo e dizer que ela é a professora favorita dele. Acho que isso faria ele desistir de me deixar escrever sobre ele.
Dou uma mordida no red velvet. ''Ué? Ele tá sem gosto!''. Mais uma mordida, a mesma coisa. Hã?
- Parece que você está perto de acordar... – Bernardo avisa – Você vai voltar depois que escrever mais um capítulo, né?
- Vou! E você, trate de voltar pra escola! Se demorar mais, seu professor vai estranhar!
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Clarice, que não é, Lispector
RomanceClarice é uma universitária de personalidade excêntrica (palavra essa que, segundo ela, lembra russos com bigodes ao estilo Salvador Dalí). Sua vida deixa de ser comum quando conhece Arthur, um colega de classe que é idêntico a Bernardo, o personage...