De novo, estou deitada no jardim de Lina. Nuvens cinzentas e pesadas cobrem o céu. Uma brisa fria e com cheiro de terra anuncia que a chuva chegará em breve. Me apoio em meus cotovelos e aprecio a paisagem outonal e pacífica das árvores com folhas amareladas e terracota. Mais uma vez o vento sopra. Algumas folhas caem e voam sobre o asfalto, rodopiando e farfalhando.
Me levanto e passo a mão pelo meu corpo para tirar a sujeira, mas, de novo, estou usando o mesmo uniforme impecável dos meus personagens. Vou em direção a porta e toco a campainha.
Ouço o som de alguém correndo até a porta. Click! O trinco se abre e uma Bonnie com pijama de coraçãozinho, a irmã gêmea de cabelos soltos, me olha confusa.
- Ué, Lina? Por que você tá de uniforme? Hoje é sábado - ela diz, abrindo mais a porta e me convidando para entrar.
Fico feliz em vê-la depois de tantos anos e sinto vontade de apertar suas bochechas fofas. Isso seria estranho. Ela não sabe quem sou eu, ou sabe, mas não se lembra.
- Eu não sou a Lina - digo - meu nome é... Emma, sou colega de classe da Lina. Ela está?
Bonnie arregala seus olhinhos castanhos e bate a porta na minha cara. "Deve ser mal de família". Escuto a voz assustada de uma mulher (que acredito ser Jaqueline) do outro lado:
"O que foi, Bonnie?"
"Mamãe, tem uma moça lá fora que parece com a Lina!", diz Bonnie ansiosa, "E ela quer falar com a Lina!", "Lina tem uma irmã gêmea?"
Os passos se aproximam da porta e Jaqueline a abre.
- Bom dia - ela me cumprimenta. Seus cabelos encaracolados estão presos num coque bagunçado, e ela está vestindo um pijama de inverno que parece ser bem confortável - peço desculpas pela minha filha, ela achou que você fosse outra pessoa.
- Tudo bem - sorrio - meu nome é Emma... Brown... e eu queria falar com Lina. Ela está? Perdão por incomodá-los tão cedo, mas é um assunto um pouco urgente.
Jaqueline parece um tanto atordoada, mas sorri e me convida para entrar.
- Lina teve de ir à mercearia, mas voltará logo. Quer esperá-la aqui? Acho melhor. Já já vai chover. Vem, pode entrar - ela me oferece um sorriso acolhedor e um par de chinelos felpudos para que eu possa usá-los dentro de casa - fique a vontade, por favor. Pode ficar na sala enquanto isso - Jaqueline me indica o caminho - Enquanto isso, gostaria de um chá?
- Ah, não precisa, não - recuso - não quero incomodar.
- Não se preocupe com isso, querida! É muito bom ter você aqui!
- Obrigada - respondo acanhada.
Entro na sala, que está iluminada com uma luz amarelada, quentinha. Bernardo está esparramado no sofá, segurando o controle remoto com uma cara entediada. Os canais mudam várias e várias vezes, intercalando entre notícias, programas culinários, desenhos animados e canais de esporte.
- Com licença - falo.
Meu personagem estica a cabeça para me olhar. Demoram dois segundos para ele perceber que não sou Lina. Bernardo senta-se rapidamente, envergonhado.
- Posso me sentar? - indico o canto do sofá ao seu lado.
Ele faz que sim com a cabeça e desvia o olhar para a mesinha de centro. Me sento. Os comentarista do jogo de futebol na televisão riem de uma piada que não entendo. O relógio tiquetaqueia. Começou a chover lá fora. Crispo os lábios, sem saber o que fazer.
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Clarice, que não é, Lispector
RomanceClarice é uma universitária de personalidade excêntrica (palavra essa que, segundo ela, lembra russos com bigodes ao estilo Salvador Dalí). Sua vida deixa de ser comum quando conhece Arthur, um colega de classe que é idêntico a Bernardo, o personage...