Capítulo 1

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Nas quartas-feiras, as "Garotas Malvadas" usam rosa. Nesta quarta-feira, eu, Clarice, (como na maioria das vezes) estou usando minha cara de quem acabou de cair da cama, pegou a primeira roupa apresentável que viu no armário e saiu correndo para a prova de Literatura Portuguesa II.

Olha só, juro que não foi pelo famoso "Só mais cinco minutos" e nem porque eu parei para fazer carinho no Paçoquinha, o cachorro de rua que mora perto do meu prédio. Até porque quase nem deu tempo de falar com o bichinho direito, foi só um "Bom dia, coisa fofa!" e mais nada. Meu celular não tocou. Ou tocou e coloquei no modo soneca, enquanto eu estava no modo zumbi. Isso não importa muito agora.

O metrô para na estação Paraíso e um contingente de trabalhadores e estudantes se espreme para entrar no vagão já lotado. Encolho-me mais no vão entre a parede e o assento preferencial, evitando ser esmagada também. O adolescente que está sentado nesta cadeira me olha torto e lhe lanço de volta meu olhar de indignação por ele fingir que não está vendo um senhor carregando uma enorme mochila na sua frente. Depois de tanto encará-lo, o garoto cede o lugar e vai embora.

"Olíviaaaaaaaaa", mando pelo YouApp, "Guarda o meu lugar? O prof chegou?"

"Ainda não", ela responde, "Guardo, o Hugo disse q a prova é em grupo, mas creio q seremos nós duas", "Onde vc tá?".

"Chegando na Consolação, 10 min".

"Okaay!", o visor mostra que Olívia ainda digita "Se continuar se atrasando, vai acabar se prejudicando com as faltas :/".

"Eu sei :(", "Tô tentando melhorar", "Pera", "Consolação".

Guardo o celular no bolso interno da mochila, abraço-a e sigo os passageiros para fora do trem. Apresso o passo e atravesso o corredor para ter acesso à linha amarela. Quase que atropelo a moça que estava mexendo no celular e descia lentamente as escadas comuns. Na plataforma, o telão avisa que o próximo trem chegará em 23 segundos, 22... 21...

Rapidamente pulo os últimos degraus e me posiciono ao lado da porta de vidro que separa os trilhos e a plataforma. Noto no reflexo, que meus cabelos estão bagunçados e que estou com olheiras escuras. "Droga...!". Os ajeito rapidamente com os dedos e tento disfarçar que estou me sentindo incomodada com esse desleixo. "Foco, amanhã você se arruma melhor".

O trem chega e saio na segunda estação. Corro pela avenida – na faixa de pedestres, é claro – ando uns 10 metros e chego à faculdade. Resumindo a travessia: "Bom dia, seu João!" - catraca - "Oi, Suzy!" - escadaria - prédio 11 - rampa - praça de alimentação - "Ei, cabe mais uma?" - elevador - 4ºandar - corredor da direita - sala 403.

Abro a porta com cuidado e sinto o frio do ar-condicionado. Grupos de no máximo quatro pessoas estão espalhados pela sala, um baixo murmurinho com comentários sobre a prova e pequenas discussões se a resposta pode ser "A", "B" ou "Camões". Entro de fininho, acenando com a cabeça e sussurrando "Bom dia" para quem olha para mim. O professor continua digitando no computador da sala, sem notar que cheguei.

Avisto Olívia sentada com mais uma pessoa na lateral da sala. Passo pelas outras meninas do nosso grupo de amizade – Camila, Barbara, Giovana e Georgia – e vou em sua direção.

– Olá! Desculpa a demora! – ponho a mala no chão e sento-me na cadeira ao seu lado.

– Bom dia – ela responde, colocando meu nome na prova e aponta para o garoto à nossa frente com a caneta – temos um novo integrante.

– Bom dia – o rapaz diz, com um sorrisinho tímido. Um arrepio percorre minha coluna, meu rosto queima – sou Arthur.

– Clarice.

Abro a mochila e pego o estojo. Olívia me entrega uma cópia da folha de questões e eu analiso-a rapidamente. Sete questões.

– Nós meio que já dividimos as perguntas – ela explica – estava com medo de que você chegasse muito tarde. Arthur ficou com a 3 e a 5, e eu com a 2 e a 7. Sobraram 1, 4 e 6. Acho melhor deixar a 6 pro final, daí podemos resolver juntos, ok?

– Aham.

Leio atentamente as questões que ficaram para mim. Pego a caneta, me sentindo muito dura, mecânica. Talvez a correria de antes, mas sinceramente, sei que não é só isso. E não é.

Respiro fundo e releio mais uma vez a questão 4. Balanço meus pés embaixo da mesa, com o objetivo de me acalmar. Porém, tenho o efeito contrário. A pergunta é direta e a resposta é simples, mas não posso errar na dosagem do que vou escrever. Qualquer palavra a mais é um risco, uma linha a menos, uma anulação de 0,75 pontos.

Começo a escrever e, de vez em quando, levanto o olhar para o rapaz de cabelos escuros e ondulados a minha frente. "Foco!". Abaixo a cabeça de novo, deixando a 4 e indo para a pergunta 1. Uma sensação estranha parece me consumir. Não é ruim, mas intrigante. Nunca vi Arthur em toda a minha vida, disso tenho certeza. Mas é como se eu já tivesse vivido uma parte da minha vida com ele. Como se eu o tivesse conhecido na Inglaterra, morado em sua casa e fôssemos melhores amigos.

Essa história existiu apenas na minha cabeça. Nunca fui para a Europa, nem saí da casa dos meus pais, meu círculo de amizade é pequeno e com poucos meninos. Porém, sinto que eu o conheço faz um bom tempo, conheço-o como a palma da minha mão.

Ele levanta o rosto, como se sentisse que estava sendo observado. Arthur me encara de volta com seus olhos negros. Os pelos da minha nuca ficam eriçados. Parece que estou encarando Bernardo, a pessoa que existe somente na minha imaginação, o personagem que criei quando tinha 15 anos.

Clarice, que não é, LispectorOnde histórias criam vida. Descubra agora