27.E EU SOU CEGO!

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Getou estava tranquilíssimo no ponto de ônibus, esperando o maldito 3666-10 que não passava nunca. Tinha esquecido seu fone e não era besta de ficar bobeando com celular aquela hora da noite, então se resignou a olhar o horizonte e esperar.

— Nossa, que frio! — exclamou uma senhora ao sentar ao seu lado.

— Tá frio mesmo — respondeu de forma solícita, pois tinha cara de mala mas era a educação em pessoa. 

Como toda senhora carente, esta em questão começou a puxar assunto sobre o tempo, sobre os ônibus, sobre a prefeitura... Getou respondeu educadamente, e iniciaram um diálogo. Até que um casal que a velhaca julgava ser de duas garotas passou por eles e, torcendo o nariz, ela começou a criticar. 

— Mas que depravação! Sabe, Deus deve ficar triste com essas coisas. Esses jovens de hoje em dia, estão perdidos mesmo... 

— Perdão, perdidos por quê? — Getou ergueu as sobrancelhas. 

— Porque homem foi feito pra mulher e mulher feita pro homem, não tem que ficar tendo essas sem vergonhices de gostar do mesmo sexo! — ela exclamou com veemência. 

— Mas Deus não é Todo Poderoso e tals? 

— Claro, Ele tudo sabe! 

— Então porque uma reles mortal como você acha que pode ficar palpitando em como Deus se sente? Aliás, ele falou pessoalmente com a senhora sobre o que acha disso? Ele te deu permissão pra sair importunando e julgando as pessoas? — Getou lançou as perguntas à queima-roupa, embora seu tom fosse o mais calmo e debochado possível.

— Ora, eu... eu... — ela tentou se justificar, surpresa pelo repentino "ataque" do moço que estava sendo tão simpático. — Está escrito na bíblia. 

— A senhora tem cara de quem nunca abriu uma bíblia, sua velha sem vergonha — uma voz se intrometeu na discussão. 

Getou foi encarar a pessoa que tinha resolvido se intrometer sem ser chamada, preocupado de começarem um barraco desnecessário ali, e foi atacado pelo colírio indesejado que caiu sobre seus olhos: um homem alto, albino, com sorriso arrogante e roupas coloridas em diferentes tons de roxo. Segurava uma bengala e usava óculos escuro, mas por estar espiando por cima deles, era possível ter um vislumbre do incrível tom de azul que seus olhos tinham. Getou precisou respirar fundo, tentando se recompor, já que estava diante de um monumento!

— E quem é você, seu viado enrustido? — se exaltou a velha, indignada, erguendo sua bolsa para ameaçar o estranho. — Vou te processar por agredir idosos, seu moleque! 

— Vem então, velhaca, quero ver se você dá pro caldo! — o cara brandiu sua bengala, e Getou ficou lívido. O que aquele idiota estava fazendo, erguendo a bengala daquele jeito? Ele podia acabar caindo! Foi pra perto do estranho, só para prevenir. 

— VOCÊS ESTÃO VENDO, AGRESSÃO A IDOSOS, NINGUÉM VAI FAZER NADA? — berrou a mulher, e praticamente todas as pessoas começaram a olhar naquela direção. 

— VOCÊ É IDOSA E EU SOU CEGO, SUA IMUNDA! VAI AGREDIR UM DEFICIENTE? — berrou de volta o bonitão albino, parecendo uma criança birrenta. 

Getou não sabia onde enfiar a cara. Meu deus, por que tinha que passar por aquelas provações da vida? Sem muita escolha, ficou entre os dois, levando umas bolsadas na cara e umas bengaladas na canela. 

— Dá pra parar com essa porra? — resmungou para o homem. — Tá passando vergonha! 

— Vergonha? Vergonha é essa senhora preconceituosa caquética, múmia velha horrorosa! 

— É O QUÊ? — as bolsadas ficaram mais fortes. 

— Chega, o ônibus tá vindo! — sem mais, Getou pegou a mão do homem e colocou no seu ombro, decidido a guiá-lo para dentro do transporte, nem que fosse só para sair daquele ponto e descer no próximo. 

— Você nem sabe qual é o meu ônibus! — reclamou ele. 

— Vai ser esse e pronto — disse já nos degraus, agradecendo mentalmente aos abençoados que tiveram a bondade de segurar a velha maluca. 

Apesar dos protestos, o homem subiu com ele, e sentaram em dois lugares vagos na frente. Getou descobriu que tinha tirado a sorte grande de pegar o ônibus que estava esperando, e nem tinha visto! Só entrou para sair logo da muvuca. Por alguma ironia do destino, aquele também era o busão que o outro estava esperando. 

— Qual o seu problema, arrumando briga do nada? — reclamou, sem conseguir se conter. 

— Ué, eu tava entediado e aquela velha era escrota, merecia ouvir. 

— Você arranja barraco toda vez que precisa esperar um ônibus? 

— Só quando eu sei que vai demorar — retrucou, piscando um olho de forma travessa. — Aliás, qual o seu nome? 

— Getou. E o seu? 

— Gojo. É um prazer, Getou! 

— Não sei se posso dizer o mesmo... — resmungou, embora não estivesse mais irritado. 

Depois de um tempo em silêncio, ambos desataram a rir descontroladamente, com direito a lágrimas e tudo. Os demais passageiros encaravam com curiosidade enquanto eles se acabavam em gargalhadas. 

— Puta que pariu! — Getou exclamou sem fôlego. — Não acredito que você bateu numa velha com a bengala! 

— Você viu a cara dela? Bom, eu não vi por motivos óbvios, mas deve ter sido engraçado... — Gojo exclamou, ainda rindo. — Dava pra ver que ela tava ndignadíssima! 

— Você vai direto pro inferno, sabe disso, né? — Getou brincou, enxugando as lágrimas enquanto tentava se recompor. 

— Ah, já aceitei minha sina — ele fez um gesto de dispensa com as mãos. — Claro, se eu trombar com você lá, não irei reclamar. 

Getou piscou, surpreso com o tom de flerte dirigido. 

— Desde que você não me bata com a bengala de novo... — brincou. 

— Mas essa é a melhor parte! — Gojo exclamou com um biquinho, o duplo sentido da frase fazendo com que caíssem na risada de novo. 

Conversaram por boa parte do caminho, e antes de Gojo descer, trocaram Instagram para manter contato. Depois de ver o lindíssimo homem descer do busão, Getou suspirou para si mesmo, rindo sozinho. Bem, às vezes até os dias de glória do pobre existiam, nem que fossem em forma de velhas doidas e barraqueiros bonitos. 

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Iniciando aqui nossa maratona de contos felizes/engraçados porque merecemos!

50 tons de SatoSugu!Onde histórias criam vida. Descubra agora