There is no safe place

970 106 18
                                    

Cruz convivia com a culpa diariamente. Por um tempo, fazer nada era a única coisa que queria fazer. Se pudesse, queria também deixar de pensar.

O tempo que passou escondida naquele maldito blacksite a isolou ainda mais do mundo lá fora. Nunca foi extrovertida, otimista, fácil de fazer amigos. O que fazia era irônico, já que foi escolhida por Joe para, literalmente, fazer amizade com a filha de um "terrorista".

Era realista, prática, sem rodeios. Mas não com ela.

Aaliyah Amrohi a deixava perdida, confusa.

Depois da ligação de Bobby, ela não estava se sentindo diferente.

Não poderia voltar pra "casa". O lugar onde vivia em Phoenix já não era seguro, e teve de ser vendido. Pelo menos o dinheiro da venda e o que ganhava como fuzileira permitia que ela pensasse em ter algum conforto no próximo lugar que chamaria de lar.

Naquela noite, fez a mala com o pouco que tinha levado para aquele lugar, fechou os olhos e tentou se imaginar em qualquer lugar dos Estados Unidos.

Sem sucesso.

Suspirou em desânimo e alcançou o celular descartável. Abriu o único aplicativo que o aparelho possuía além de "contatos" e "mensagens": Mapa.

Cruz queria tirar a responsabilidade de si mesma de escolher qualquer coisa e resolveu contar com a sorte. Simplesmente fechou os olhos e apontou no mapa. Flatwootds, Kentucky.

Estava decidido.

No dia seguinte, pediu ao motorista que a levasse ao aeroporto e dali seguiu sozinha.

(...)

Fazia duas semanas que Cruz desembarcara naquele lugar. Tinha que admitir que Flatwoods tinha seu charme.

Alugou um flat mobiliado na cidade e começava a deixar o ambiente com a sua cara. Comprar um lugar estava fora de cogitação. Não queria firmar raízes com a possibilidade de ter que abandonar tudo outra vez, se desprender do que tinha em Phoenix já tinha sido muito doloroso. Apesar de pequeno, o lugar representava muito pra ela. Foi sua primeira conquista. Depois que saiu da casa de seu "ex namorado" - se é que podia chamar disso aquele filho da puta - e se juntou ao exército, com alguns meses já conseguiu financiar aquele apartamento.

As paredes pintadas de amarelo tinham sido as únicas testemunhas de seus momentos mais difíceis na academia militar. Lá passava os dias aguentando. Aguentando a rotina de militar, as insinuações dos colegas e superiores, machismo, xenofobia...

Nunca abaixava a cabeça, nunca se permitia externar o que estava sentindo, "ser fraca". Só ali, naquele apartamento minúsculo é que, muitas vezes durante o processo, chorava, gritava, explodia.

Havia ficado mais tempo fora, do que naquele lugar por causa de suas missões, é verdade. Mas se não tinha pra quem voltar, pelo menos sentia que tinha pra onde.

Agora já não tinha mais nada em Phoenix que não fossem lembranças.

Precisava recomeçar. Como já tinha feito tantas vezes na vida, o que não tornava menos doloroso.

Pensava se Aaliyah havia recomeçado. Se teria um novo noivo arranjado, se teria mudado de ideia sobre filhos, se ainda visitava os Estados Unidos exclusivamente para fazer compras.

Teriam aqueles olhos verdes chorado por ela?

Não, seria prepotência achar que Aaliyah teria chorado por ela, senão pelo pai. Em seu lugar, não derramaria uma lágrima sequer por aquela que manchou todas as paredes daquela cozinha em Mallorca com o sangue de Asmar.

Já ela chorou por Aaliyah inúmeras vezes. Chorou até por Asmar. Nada naquele homem indicava que ele era o monstro que a CIA a fizera acreditar.

De Ehsan não sentia nenhum remorso. Principalmente depois de como ele se referiu à Aaliyah no dia da chegada de Cruz em Mallorca. Era, no mínimo, um canalha, e não faria falta pra ninguém.

(...)

Recomeçar.

Manuelos precisava se movimentar em direção a isso.

Eram oito horas de uma noite quente no Kentucky, como de costume. No dia anterior tinha passado em frente a um parque quando voltava do mercado, que ficava a uns 10 minutos de sua nova casa e pensou que valeria a pena visitar algum dia. 

Achou que era o momento perfeito para dar uma volta, "ver gente" para não enlouquecer e pensar em alguma coisa que não fosse confrontar a si mesma sobre as decisões que a levaram até ali.

Lá fora, a noite estava convidativa, então Cruz seguiu sem pressa pelas ruas vazias de Flatwoods rumo ao parque.

Depois de virar a segunda esquina, percebeu que uma van da "Dedetização do Tom" vinha logo atrás.

Já tinha pensado que estava sendo seguida dezenas de vezes ainda no Nebraska, mas nada nunca tinha lhe acontecido ali. Ou a CIA estava a vigiando como sempre ou estava ficando paranóica.

A van então passou direto por ela e virou numa outra esquina.

"Definitivamente, paranóica", pensou enquanto via o veículo desaparecer.

Cruz continuou caminhando, até chegar à rua que a van tinha virado.

Foi como ter um dejavu: pelo menos quatro homens encapuzados a esperavam ali e ela logo sentiu o primeiro lhe golpear no estômago e outro tentar lhe imobilizar. Lutou, e até chegou a derrubar um deles, mas depois de mais alguns socos, foi ao chão e a última coisa que viu antes de apagar foi seu corpo ser jogado dentro daquela van.

ENEMIESOnde histórias criam vida. Descubra agora