Um brilho no escuro

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Era sexta-feira de carnaval em Primavera do Sul, estava já escurecendo e na cidade o povo se agitava, as bandas arriscavam as primeiras notas do que iriam mostrar nos próximos dias.
Mas Manoel não. Manoel não gostava nada disso. Nem era por religião, era porque não gostava desse monte de gente pulando de um lado pro outro. Manoel não gostava de ver gente em alegria quando ele mesmo não sabia e não conseguia ser feliz.
Então quando era carnaval, quando tinha festa ele vinha pro mato. Trazia suprimentos, trazia os utensílios e a velha espingarda do seu falecido pai. Vinha ele e o cachorro Pretinho vira-lata, único ser vivo fiel que o aturava.
- Vocês que se lasque nessa merda! Cidade de bosta, gente de bosta, serve pra nada! Era bom que pegasse fogo em tudo!
Resmungava coisas assim como que desejando um castigo divino aos foliões.
No meio da mata a noite avançando e a claridade da lua deixava tudo bonito, era quase dia.
Pretinho começa a latir para uma moita. Manoel pedia para ele silenciar. Normalmente ele não agia assim, foi treinado para caçar
E pretinho rosnando cada vez mais raivoso chegou uma hora que não se aguentando pulou na moita e sumiu na mata.
O homem ficou sussurrando o nome do animal em vão, qualquer caça que houvesse ali já tinha se espantado.
Pretinho já latia longe em sua perseguição. Manoel então se embrenhou na mata atrás dele.
A mata era fechada, mas havia claridade o suficiente para se localizar e desviar dos obstáculos no caminho. Mesmo assim pretinho parecia cada vez mais longe, ele não conseguia alcança-lo.
Até que a claridade diminui de um momento para o outro, sem aviso. Manoel se arranha todo e tropeça.
Caído no chão, Manoel pretinho rosnar próximo dele. Parece que finalmente tinha alcançado sua caça. Folhas se agitam, era ele avançando, e barulhos de luta se seguiram.
Manoel chama pelo amigo e ouve um som de batida seco e o grito repentino de pretinho e silêncio. Manoel grita e corre na direção. Engatilha a espingarda e sai mirando no escuro.
Ele chega numa clareira desconhecida. Manoel anda nessa floresta desde criança e nunca viu essa clareira e no meio dela tem um forma escura em pé na sua direção.
- Você aí seu cabra! Fica parado aí ou vai pro inferno hoje.
Aquela coisa magra e escura se virou para ele, não conseguia ver seu rosto ou suas vestes. Era muito magro e mais alto que qualquer homem que já vira. A forma como se moveu era mecânica, de um jeito que nenhuma pessoa poderia se mover.
Pretinho subiu imóvel no ar ao lado daquilo. Olhos fechados. De um buraco em suas costas saia o que parecia ser sangue e algo mais grosso.
Manoel deu um tiro, não causou nenhum efeito. O homem pensou ter errado pelo seu alvo ser muito esquálido, então deu o primeiro e o segundo. O efeito foi o mesmo.
Em seguida ouviu um zumbido perto do seu ouvido , depois algum como mastigação e seu corpo todo ficou paralisado. Não conseguia mover nenhum músculo. E aquilo começou a se mover em sua direção. Definitivamente não se movia como uma pessoa. E então movia-se a coisa com o corpo de pretinho soltando sangue e vísceras para o alto.
Manoel rezava em pensamento esperando seu fim. Mas na verdade ele só queria poder dar mais um tiro na cabeça daquilo.
Quando chegou bem perto a claridade da floresta voltou e ficou sobre eles. Lá no alto viu um círculo luminoso branco e não era a lua. O que saia de pretinho está indo para lá.
Manoel baixou a cabeça para ver quem traria sua morte.
Já era manhã de sábado quando acordou na mata ao lado da casca seca e sem olhos do que já fora seu único amigo.
Não lembra de ver o rosto e a fisionomia da coisa.
Pelo menos foi isso que registrado no boletim de ocorrência da 1ª Delegacia de Polícia de Primavera do Sul.

A Noite que olhamos para o céu Onde histórias criam vida. Descubra agora