Do Fogo à Brasa - a matéria no fim do mundo

13 3 2
                                    

E foi assim, só entrei nessa porque ela me deixou. Foi embora com tudo que era nosso, levou suas duas malas e meus discos. Levou o também o violão. E nem com raiva eu conseguia ficar. Eu não sentia nada, porque se sentisse eu ia chorar.
Tenho que agradecer o Oliveira que arrumou esse trabalho pra gente. Se ele não tivesse me chamado eu entraria no bar e bebia tudo da prateleira até morrer. Olha, agradeço sim, mesmo depois de tudo que passamos. Porque foi um divisor de águas na minha vida.
A gente pegou a estrada bem cedinho, às 3 da manhã, nem compensava dormir, então fui virado do bar mesmo. Vieram me buscar num karmann ghia, vermelho novinho pago com seu salário de diretor. Então eramos só eu, ele e o menino André, que era nosso estagiário e câmera. Aliás, uma coisa tem que ser dita: Se não fosse por esse rapaz a gente não teria como provar nada do que passamos. Ele gravou tudo, é uma prova documental, isso ninguém tira!
Bom, eu até consegui ficar acordado no começo da viagem, falando umas bobagens de homem abandonado, que queria outra chance, que ia ser outro homem para ela. Quando o dia ia amanhecendo eu apaguei e ficaram só eles conversando na frente. Nem via quando eles paravam para esticar as pernas.
Chegamos em Morrinhos de Cristo às 11 da manhã. O banco de trás era confortável e as únicas dores que eu tive foram da ressaca. Comemos alguma coisa e fumamos. Todo mundo fumava naquele tempo. Nosso destino era a cidade de Cachoeira Alta, que ficava há mais de 200 quilômetros pra frente. E eu não sabia que reportagem íamos fazer. Mas um senhorzinho que viu a gente conversando me deu a pista.
- Os amigos tão indo pra lá?
- Pois é, meu chefe aqui só me contou agora! Brinquei.
- Vixe Maria! Vocês não tão sabendo que o Diabo tá praquelas bandas? Ele tá visitando as cidades que brincam de carnaval. Tem um povo que veio de lá falando que viu o próprio Satanás descendo nas rua! Até caminhão do exército passou aqui praqueles lados.
- Então se a gente der sorte ele deve estar de ressaca igual eu.
- O amigo brinca, mas isso aí é castigo pro povo que vive na perdição. Essas festas atraí os bicho ruim. Eu se fosse os senhores eu dava meia volta pra capital no estado de vocês, mas se é trabalho, vocês têm que ir mesmo. Então é melhor fazer uma oração antes!
Ele foi embora depois disso, a gente deu muita risada e jogamos as bitucas no mato.
- Já tá bem pra dirigir? Me perguntou o Oliveira.
- O moleque aí não pode levar o carro?
- Ele não tem carta ainda.
- Ele quase não fala né? Acho que você paga tão pouco que nem dá pra ele tirar a habilitação seu corno!
- Ô Campos, não tá vendo que nem barba o menino tem?
- Verdade, nem cabelo no saco deve ter.
Entramos no carro e eu já soltei:
- Então a gente vai entrevistar o diabo e você nem ia me contar seu filho de cachorra?
E a gente caiu na gargalhada, inclusive o André.
- Viu? Falar ele não fala, mas gosta ri que é uma beleza! Brinquei.
Chegamos em Cachoeira Alta às 3 da tarde e ainda bem que meu chefe já tinha feito a reserva no hotel. Porque já era quarta feira de cinzas, mas o lugar ainda estava lotado de turistas. Depois descobrimos que eles faziam uma festa para o encerrar o Carnaval nas quartas de cinzas.
- Acho que o povo não tem medo do Diabo por aqui. Soltou nosso jovem estagiário.
Depois de desfazer as malas fomos direto tivemos uma rápida reunião de equipe e o Oliveira disse o que realmente viemos fazer aqui.
Então era isso mesmo. Viemos atrás desse tal Diabo que o velho tinha dito. Olha, eu comecei como repórter esportivo, depois fui virei repórter investigativo atuando em crimes e agora me põem pra fazer aquilo. Na hora eu disse que aquele negócio não era jornalismo. Aí o Oliveira já respondeu que era o que dava pra fazer por mim. Que nenhum editor queria trabalhar comigo depois das burradas que eu andava fazendo. Eu só queria que eles passassem pelo que eu estava passando naquela época.
Saímos com hora marcada para a entrevista que vocês viram.
Chegamos na casa do seu Raimundo e dona Margarida que moravam em uma casinha afastada do centro. Eram trabalhadores rurais que iam cedinho de bicicleta para a lavoura e voltavam no início da noite para casa. Um casal muito humilde e simples de tudo. Tinham 5 filhos, mas nenhum morando com eles, foram embora. Segundo dona Margarida já fazia 5 anos que não mandavam nem notícias. A senhorinha chorou na entrevista me contando isso. Eu aproveitei para fazer um apelo a eles já que o programa ia ao ar. Oliveira queria adiantar as coisas me pedindo foco. Eu gesticulei pra ele se danar.
Enfim entramos no assunto. E fomos direto para a parte onde eles disseram o que viram. Seu Raimundo foi quem mais falou. Alegava que dona Margarida não enxergava tão bem quanto ele e não viu todos os detalhes.
- Olha seu Campos..
- Pode me chamar de Marcos, só esse Oliveira metido a besta me chama pelo sobrenome!
- Corta essa parte André! Disse o Oliveira .
- Olha seu Marcos, eu já contei essa história em tudo quanto foi canto esses dias, e a gente tá cansado de ficar se repetindo, do povo rindo de nós, chamando a gente de mentiroso e de louco. Só aceitei mesmo porque o seu Oliveira foi muito educado quando mandou me chamar no telefone do bar do Jota!
- E nós da Rede Piratininga agradecemos sua colaboração seu Raimundo e dona Margarida!
- Então foi assim, a gente tava voltando na pedalada das terras do seu Gerônimo umas 6 pra 6 e meia da tarde. Eu pedalando e a mulher na garupa com as sacola. E já tava tudo escuro, o céu tava meio nublado e meio limpo. Tinha umas estrela pequenininha lá longe. E foi aí que o a gente viu né mulher? Aquela bola branca passando por cima de nós...
- E tinha um facho de fogo atrás igual um rabo... Completava dona Margarida.
- Parecia um rabo de fogo alumiando tudo no céu. Seu Raimundo. A gente ficou assustado com aquela bola de fogo.
- O que vocês pensaram que era dona Margarida?
- Que era o fim do mundo como tá na bíblia. Interveio seu Raimundo.
- Parecia mesmo. Respondeu a mulher.
- Mas e aí? O que vocês fizeram quando aquilo passou por vocês?
- Eu fiquei gelado né? Parei de pedalar. A mulher começou a rezar. Foi aí que a gente ouviu o barulho e o fogaréu subiu no alto.
- E o que isso podia ser pro senhor? Pensou que era uma bomba?
- Eu num pensei foi é nada, eu só montei de novo na bicicleta e fomos na direção de onde caiu o trem.
- E o senhor não ficou com medo do que poderia ser aquilo?
- Medo a gente sempre tem, mas parecia um negócio colando aqui na cabeça que tinha que ver que diabo era aquilo! A Margarida ficava dizendo pra eu deixar disso, que era coisa que não era pra nois ver.
- Mas o senhor não parou não é?
- Eu senti que não ia descansar, que não ia dormir se não fosse ver.
- Então foi mesmo podendo ser algo perigoso?
- Fui.
- E onde tinha caído era muito longe de onde vocês estavam?
- Devia de ser uma légua, uma légua e pouco. Não era do outro lado da serra, mas mesmo se fosse eu ia.
- E conseguiu chegar?
- Consegui sim, uns vinte minutos depois chegamo lá .
- E o que vocês viram quando chegaram?
O homem fez um silêncio, olhando direto pra mim. Se ele desviasse o olhar eu ia achar que estava inventando a história, buscando uma forma de dizer. Mas ele ficou vidrado em mim. Dona Margarida olhava para ele esperando ele encontrar as palavras. Só que ele não conseguia.
- A gente chegou e tinha fogo na mata. Disse dona Margarida. Um trem do tamanho de uma cisterna tava pegando fogo e umas árvores tavam caídas pro lado. A gente nunca que viu um negócio daquele.
- Como era exatamente dona Margarida? Esse objeto.
- Era tipo uma bacia funda, parecia uma panela funda dessas de alumínio, só que pegava fogo em tudo de redor, menos nela. Ela ficava ali parada.
- Fala dos meninos! Disse seu Raimundo com a boca tremendo.
- Que meninos? Perguntou a mulher.
- Os que veio depois.
- Mas homem do céu! Aquilo não era menino não, eu já não te falei?
- E era o quê então mulher?
- Você sabe!
- De que meninos ele está falando? Perguntei.
Ela me olhou bem nos olhos, depois para o Oliveira e soltou:
- Olha seu Campos, era umas coisinhas parecendo menino japonês, mas não era menino não. Eles tinha a cabeça potuda e tudo careca. Uns olho puxado só que grande e tavam tudo pelado. Aí depois que eu vi que não tinha nada lá embaixo sabe? Tipo roupa bem colada no corpo. Eles tavam em três e vinham mexendo os braços querendo dizer alguma coisa.
- E eles falavam cantando. Interrompeu seu Raimundo. Era uma coisa bonita que dava medo. A gente não entendia nadinha do que eles falavam. Mas dava um sono ouvir aquelas vozes. Parecia gato namorando de noite.
- Foi quando veio um igualzinho eles todo queimado pegando fogo. Não demorou nada e apareceu os homens fardado com os farol de jipe, gritando e atirando. Dois caíram na hora e os outros dois saíram correndo igual galinha perdida no mato. A gente ficou quietinho na moita morrendo de medo. Fechamo os olhos e tampamos o ouvido pra não ouvir o grito de dos bichinho. Eles bateram neles até que a gente não ouviu mais nada. Montaram nos carros e sumiram na estrada. Só depois de muito tempo nós saímo do mato e viemo pra casa. A gente ia ficá quietinho sem ninguém saber de nada, mas esse meu homem aí  quando bebe não consegue ficá calado, saiu contando pra todo mundo no bar do Jota!
- Mas mulher, tava todo mundo já tava falando disso! Eu só coloquei mais lenha na fogueira.
- É, mas depois que você abriu a boca Raimundo, só nóis que perdeu a paz!
Eu perguntei na hora se eles podiam levar a gente lá nesse lugar onde tudo aconteceu, mas seu Raimundo não quis ir de jeito nenhum. Então só pedi as coordenadas e ele nos deu.
Antes de sair pedi para dona Margarida fazer um apelo aos filhos que lhe visitassem ou pelo menos ligassem no bar do Jota. O programa era em rede nacional e ia ao ar naquela semana. Agradecemos pela entrevista, pelo café e pegamos a estrada de novo.
Já no carro o Oliveira chamou minha atenção por ter feito propaganda gratuita de um boteco na maior rede de televisão do país.
Eu lembro de mandar ele pro inferno e o garoto deu muita risada.
Aí ele reforçou:
- Você fez isso duas vezes! Duas vezes! Gritou com os dedos esticados.
- Só você mandar cortar na edição. Tá discutindo à toa. Virou minha mulher agora?
- Se eu mandar cortar nessas partes já vi que vai ficar uma droga.
A gente chegou ainda de tarde com sol no lugar indicado. Levamos uma caneta Sankyo novinha, era portátil e usava bateria. Era tão cara que só a Piratininga tinha uma daquelas em todo país. Vimos algumas árvores queimadas como eles disseram, tiramos umas fotos e gravamos um pouco.
Até ali seria só isso, uma matéria comigo falando desse local e o depoimento do casal. Coisa pouca e depois voltaríamos pra casa. Perto dali encontramos um rio de água bem clarinha, parecia que ninguém frequentava. Aproveitamos  pra beber água e foi que aí a gente achou umas manchas escuras no chão. Parecia sangue,  mas ainda estava fresco. Seu Raimundo e dona Margarida disseram que tudo aconteceu na sexta-feira de carnaval. Oliveira cheirou e disse que parecia sangue.
De repente começamos a sentir uma coisa diferente no ar.
Não sei bem o que era. Uma eletricidade, uma vibração que fazia os dentes tremer dentro da boca, tremia até a língua. Um zumbido no ouvido que coçava.
O céu escureceu rápido, não foi uma coisa natural. Naquela época do ano a noite só caía lá pelas 7 da noite. Até hoje eu e o Oliveira discutimos sobre o que poderia ter acontecido. Ele tem umas ideias mais loucas que a minha, vocês deviam entrevistar ele também. Ah sim, ele só faz isso agora. Depois que se aposentou criou uma revista mensal que só fala desses assuntos.
Bom, então escureceu do nada, e eu percebi primeiro, depois eles. Aí o André levantou assustado balançando as mãos. Disse que a água estava dando choque.
Eu ainda me lembro quando o Oliveira também viu o céu escuro, do reflexo dos óculos dele procurando alguma luz no céu. O pequeno brilho vinha da câmera do André.
Até hoje não sei como explicar nossos batimentos estarem acelerados. Você consegue entender? A gente sentia medo e nem sabia do que era. Um olhando para o outro e a sensação de que alguma coisa ia acontecer.
E aconteceu. Uma coisa em forma de prato sai devagar do rio e ficou parada assim, nessa altura. Um pouco acima da nossa altura.
O André levou só um segundo para sacar sua câmera Sankyo. Aquele negócio saiu deslizando pra dentro da mata e o André foi atrás dela se embrenhando atrás. O Oliveira olhou pra mim e nós fomos atrás dele gritando pra voltar.
Eu sei que a gente se arranhava, caía, levantava e aquela luz indo embora, dava pra ver entre as árvores, muita folhagem na frente. E a gente nem sentia dor, não sentia cansar. Eu nem pensava em material pra entregar na quinta. O Oliveira talvez pensasse no que estava sendo gravado. Só depois é que a gente pensou como estava no meio de uma coisa grande de verdade. Na hora eu só queria correr e achar aquele moleque.
E foi quando chegamos numa clareira, parecia um campo de futebol. Não tinha mais morro, não tinha mais mato. Era tudo plano assim. Não tinha Lua e não tinha estrela, estava escuro, mas dava pra ver direitinho o André ajoelhado no meio. Tivemos medo de nós aproximar e confirmar o que parecia ser inevitável. Mas a gente era homem e alguém tinha que fazer aquilo, então fomos os dois.
O menino estava rígido como pau, mas estava vivo e respirando. Seguramos ele e tebtamos acordá-lo chacoalhando pelos ombros. Aí ele deu um pulo e abriu os olhos. Só dava pra ver a parte branca. E ele começou a repetir: "Os nossos meninos. Onde estão os nossos meninos? O que vocês fizeram com os meninos?"
Por mais que a gente mexesse com ele e falássemos com ele repetia isso.
Até que o céu se mexeu e o que mantinha aquele escuro saiu de cima de nós. Nunca senti tanto medo.

A Noite que olhamos para o céu Onde histórias criam vida. Descubra agora