O sol revela o que a noite escondeu

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Já passava das dez da manhã quando seu Isaque avistou a viatura dobrando as curvas entrando em suas terras. Levantava tanta poeira que sumia na estrada. Achou aquele carro tão pequeno perto do estrago que tinha para ser resolvido. Mandou a empregada passar outro café e fazer a mesa.
Ele olhou para cima e já sabia que aquela seria uma segunda feira de sol e muito calor. Isso o deixou mais emburrado. Cuspiu no chão e voltou para a varanda.
Os dois homens fardados desceram do carro abanando a poeira deixada no ar.
- Vai por mim, se tivesse chovido certeza que esse carrinho de vocês não chegava aqui. Tem que ter uma daquelas pra andar por aqui. Disse apontando o queixo para a caminhonete Ford F100 no quintal. É isso ou ter uma mula boa de lombo.
- Bom dia seu Isaque, disse o sargento Romão, o senhor chamou estamos aí!
- O amigo vai desculpar, mas eu chamei vocês foi ontem de noite, o que tinha pra morrer já morreu e o que tinha pra ser roubado já tá longe.
- Acredito que o senhor sabe que dia foi ontem não é?
- E eu lá quero saber de carnaval!
- Não é qualquer dia de carnaval, foi domingo de carnaval e à noite é pior.  O povo parece que quer se vingar da vida dura. É aquela algazarra, briga de bêbado, turista querendo correr pelado, um tal de mexer com a mulher do outro, é vizinho reclamando de barulho. Então todo efetivo estava empenhado na contenção.
- Enquanto isso a gente que vive na roça que se lasque!
- São ordens de cima seu Isaque, o senhor entende.
- Então eu preciso ter uma conversa com quem está em cima pra lembrar quem foi que colocou ele lá!
- Nós não trabalhamos para o prefeito seu Isaque, trabalhamos para o governo do estado.
- Aquele gordo? Eu também consegui votos pra ele. O bom é que esse tem mais dinheiro e vai me ajudar com o prejuízo que tive.
- Sim, podemos falar sobre isso, ontem na sua ligação o senhor relatou umas coisas estranhas...
- Calma, tudo no seu tempo sargento. Vamos tomar um café primeiro, o dia já está perdido mesmo.
- Armandinho, vem com a gente! Chamou o sargento Romão. O senhor conhece o Cabo Armandinho? Vem cá rapaz.
- Hum, eu conheço esse rosto. Disse o fazendeiro.
- É o caçula do Coronel Moreira, disse o oficial.
- Ah sim, eu logo vi que conhecia. Homem bom o Armandão. Dos poucos que não me pede nada por aqui.
Apertou a mão do jovem que corou imediatamente.
- Seu pai é um grande homem com certeza, só não deixa ele entrar pra política, isso estraga a pessoa! completou olhando bem fundo nos olhos do sorridente praça.
- Então venham, a Rosa já colocou a mesa, lá a gente fala dessas coisas, aqui não. Disse ele já menos carrancudo.
Depois de satisfeitos o sargento limpa a boca no lenço e foi direto ao assunto:
- Vamos pro o assunto seu Isaque? A sua ocorrência...
- Vamo sim, eu conto enquanto levo vocês lá.
- Lá onde?
- Lá onde aconteceu oras. Os senhores não anotaram o que eu falei no telefone?
- Quando o senhor ligou foi uma central lá da capital que atendeu, eles não passam os detalhes pra nós.
- Sei. Respondeu o velho fazendo cara de desconfiado.
- Armandinho, pega o caderno lá na viatura e tome nota de tudo que o seu Isaque disser. Não deixe nenhum detalhe de fora.
- Sim senhor, respondeu o jovem batendo continência todo desajeitado e saiu.
- O rapaz é bom, só que tem uns probleminhas. Disse Romão indicando com dedo na cabeça.
- Entendi. É retardado?
- Não, só um pouco lento. Mas foi o suficiente pro Exército dispensar. Ele é bom em cumprir ordens, não bebe e não perde a cabeça por causa de rabo de saia.
- O que já é mais do que se pode dizer da maioria por aqui.
- O Senhor nem me fale. Vamos lá na nossa viatura?
- O quê? Eu não entro nisso aí de jeito nenhum! Vamos na Julieta, cabe todo mundo, eu dirijo e conto tudo pra vocês no caminho!
E assim foi. Na estrada cheia de buracos o cabo Armandinho ia se desdobrar para pra tentar escrever um relatório. A missão mais desafiadora até ali em sua curta carreira na Polícia Militar.
- Então sargento foi por volta de umas onze da noite quando o Tião, meu faz tudo veio bater na minha porta. Eu tava dormindo fazia era tempo, num sono pesado, então acordei e levantei louco de raiva com as batidas e os gritos. Peguei meu porrete e fui pra porta:
"Não tem um inútil nessa casa pra abrir essa desgraça de porta não?Tião seu preto velho excomungado dos infernos, tu vai ver só quando eu sair aí fora!"
- O homem tava branco que nem fantasma iluminado com lampião, eu ia dar na cabeça do coitado sem nem pensar, mesmo se me pedisse perdão. Só que ele disse foi coisa que realmente toca meu coração:
"Tem coisa no mato dando fim nos gado tudo!"
- Aí eu peguei o revólver, a espingarda e passei o porrete pra ele. O gado tá essa temporada no pasto de trás do morro, que é onde o Tião mora numa casinha minha. Foi a hora que eu liguei pra vocês pedindo ajuda e como não tive certeza do apoio resolvi vir eu mesmo. Aí entramos na Julieta e ele foi me contando as coisa bem daí onde cês tão agora!
"Ô Tião, você desenbucha o que cê viu, num fica duro aí igual pau de cerca não!"
"Ah seu Isaque, eu num consigo falar direito não, o senhor tem que ver."
"Ora, agora você vai falar porque eu quero saber se é gente roubando meus boi ou se é bicho arrastando eles pro mato! Se não falar quem leva chumbo é tú"
"Num era..."
- Disse isso e ficou calado de novo todo duro olhando pro caminho.
"Num era o quê? Fala logo diacho!"
"Num era bicho."
"Ah tá, então vamo dar fim nesses ladrão vagabundo. Vamo passar nas casa dos peão e caçá os filho do cão."
"Num era gente também seu Isaque."
- Aí eu dei foi uma freada com tanta força que os pneu de trás chegaram a levantar.
"Olha Tião, tú não vai me dizer que me acordou por causa de assombração não né? Porque se for já pode passar em casa, juntar suas coisas e sumir no mundo!"
O velho começou a dar risada. Armandinho não sabia como anotar uma risada no bloco de notas.
- E o que foi que ele disse? Perguntou o sargento todo envolvido na história.
- Sabe? Conheço aquele preto desde que nóis era menino, já vi ele apanhar em briga de homem e já vi ele apanhar de cinta do meu pai. Nunca que eu vi foi ele soltar uma lágrima só, mas naquela hora tinha era um rio descendo do olhos dele. O homem tava com tanto medo que parecia ter visto Satanás lá no mato.
"Era o Cão lá no pasto, ele abriu o curral e soltou os boi, as vaca tudo só pra fazer maldade com os bicho. O senhor tem que acreditar em mim!"
- E eu acreditei.
"Agora eu acredito, mas nós vamos passar na casa dos peão pra caçar esse diabo."
- Então virou uma caçada ao diabo. Completou o sargento.
- Foi o que foi. Eu consegui só mais dois homens pra poder ir junto. Todo mundo de arma na mão e só eu tinha lampião. E tava um breu danado tudo escuro quando chegamos. Um silêncio só, nem pisada e nem barulho de boi. Aí eu não ia me enfiar ali no pasto sem saber tudo o que tinha acontecido.Virei pro Tião e disse:
"Vamo Tião, agora tá todo mundo aqui, todo mundo armado. Conta mais uma vez o que tu viu!"
"Bom seu Isaque, eu já tinha rezado e tinha acabado de deitar quando ouvi um estou como se fosse trovoada. Daí levantei no pulo e corri pra janela ver. Não tava tão escuro assim e deu pra ver a porteira do currais aberta. Daí os animal começaram a sair e mugir. Peguei o facão e saí gritando e perguntando quem tava aí. Subi correndo o pasto entre os bois e as vaca até chegar na porteira. E foi aí que eu vi lá em cima um cãozinho perto da portei e ele riu pra mim."
"E como era esse tal capetinha?"
"Ah, era pequeno assim do tamanho de um menino, só que tinha uns dente pontudo, zóio preto e tava todo pelado, aquilo não era gente, não era bicho e nem assombração, porque eu danei a rezar e clamar por nossa senhora e não fez nada, fez foi o diabo vir pra cima de mim. Aí eu saí correndo e fui bater na casa do senhor."
- E aí, o senhor decidiu subir? Perguntou o sargento.
- Tinha que subir né? Levei todo mundo até ali, não dava pra voltar sem saber. Me diz uma coisa sargento, que horas são e como tá o céu?
- Já são quase onze horas e o céu tá limpo, e deve estar um calor danado.
- Céu limpinho?
- Sim.
- Tá certo, tamo quase chegando. Então continuando eu passei o lampião pro Tião e ele foi na frente enquanto eu e outro cabras foram atrás. Mas mesmo com lampião era difícil ver o que tinha na frente. Não dava pra ouvir nada, nem mosquito. Só os passos da gente subindo o pasto. Eu só pensava na gente chegar na porteira do curral e lá de cima poder ver o que ia fazer. Foi quando tropecei num troço grande e preto. Aí foi que começaram a ter uns passinhos ligeiros no meio do pasto. Pra lá e pra cá, só que a gente não conseguia ver. Já ficamos em alerta e apontando as armas pra todo canto que ouvia alguma coisa se mexer. Deviam tá em toda parte. Tião tava tão assustado que não conseguia acompanhar a gente, então tomei o lampião dele e apontei numa direção e vimos aqueles troço pálido, era pequenininho que parecia um molequinho. Só que realmente não era bicho, não era gente e nem assombração. Parecia tudo isso junto. Eu mirei e dei o primeiro tiro, o outros me acompanharam. Eu digo que ninguém acertou e olha que o bicho tava bem na nossa mira. Depois foi pior. A gente não viu nada, mas ouviu e sentiu. Parecia um monte de criancinha rindo e passando pela gente, rolando nas nossas pernas, até arrepiava os pelos. E a gente não via nada mesmo com lampião na frente. Aí foi que Tião gritou dizendo que agarrou um e a gente correu pra ele, daí ele soltou um grito de dor, falou que tinham espetado ele ou arranhado. Ele tinha mesmo um furinho no braço, mas agora não sentia nada. Mas daí esses negócio começaram a rir da gente e correr bem perto. Eu resolvi que era hora de sair dali.
- Uma decisão acertada. Disse o sargento.
- Apois descemos a ladeira correndo e trupicando em montes no escuro até a gente entrar na casa do Tião. Eu achei melhor esperar o dia clarear pra ver se acalmava. As coisas ficaram rodeando a casa até quase de manhãzinha. Aí a gente foi ver o pasto.
- E o que vocês viram?
- O que nós vimos? Vimos isso aí ó! Já chegamos.
O lugar era um campo ondulado cheio de cupinzeiros ladeira acima e no fim havia a estrutura escura onde o gado era levado para passar a noite. O que chamava atenção era sua porteira abrindo e fechando ao vento. Mas nada comparado ao que estava espalhado por todo o campo. Todo o rebanho do homem caído ao sol. Uma imagem desoladora. Armandinho parou de anotar para contemplar.
- Sabe o que é mais estranho? Nenhum urubu no céu, nenhum urubu sobre eles, nem as moscas chegam perto! Disse seu Isaque.
Sargento Romão pegou um toco de madeira e foi andar por entre os corpos.
- Vocês fiquem aqui.
Verificou orifícios perfeitamente redondos em todos os corpos. Todos do tamanho de uma laranja. Cada animal tinha os mesmos e nos mesmos lugares. Introduziu a madeira neles para conferir uma teoria.
- Estão ocos. Disse ele.
- Como assim? Perguntou o fazendeiro.
- Não tem nada dentro deles. O couro está seco. Não têm órgãos, nem olhos mais.
- Coisa do demônio... Soltou Armandinho.
- Esse seu funcionário, seu Tião onde ele mora mesmo? Perguntou Romão.
- Ali embaixo naquela casinha. Ele trabalha pra família desde que nasceu. É praticamente da família. Nunca casou, não teve filho, acho que ninguém quis o coitado. Então ele fica aí trabalha e eu dou de comer, dou de vestir e onde morar!
Chegando no casebre de taipa, seu Isaque chamou e chamou, mas ninguém atendeu. Então o sargento sacou sua arma e ordenou que o cabo arrombasse a porta.
Era um cômodo único com tudo de mais pobre que um homem pode ter para viver, porém tudo organizado e limpo, cuidado com capricho. O que não combinava era o cheiro de decomposição misturado com amônia. O homem velho se levanta da cama tentando falar, cambaleando em direção ao seu senhor, estende o braço em direção a ele. Estava cheio de feridas escuras e secreções pelos orifícios. O velho tentava se afastar, estava apavorado. Os policiais chegaram a pegar suas armas no coldre, mas logo em seguida o braço despenca todo apodrecido no chão, suas pernas não sustenta o peso do corpo e se quebram abaixo dele. O pobre Tião estava morto e seus pedaços esparramados pelo chão.

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