Capítulo 19

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  Laerte não estava com a cabeça naquele "encontro". O rosto dele estava muito sério, sequer um sorriso havia escapado de seus lábios para ela, não que quisesse, ainda não o tinha perdoado, ainda assim, era estranho vê -lo tão sério.

  — Sabe, normalmente as pessoas conversam em um encontro.

  Ele limpou a garganta, parou de brincar com o copo baixo com dois dedos habituais de uísque e levantou sua atenção para ela.

  O sorriso dele apareceu, suave, destacando as covinhas em suas bochechas.

  — Então estamos em um encontro?

  Ela cruzou os braços.

  — Não foi o que eu quis dizer.

  O sorriso dele aumentou, os olhos deles estavam emparelhados, estudando-se, ele a olhava em repleta reverência, uma maneira tão desconcertante que Iraci baixou os olhos e espiou a contusão em seu pulso. Laerte seguiu seu olhar, soltou um som áspero, como se reprimisse um rosnado.

  Ele olhou para Teobaldo, de prontidão do lado de fora do restaurante, então olhou para ela e encrespou os lábios.

  Iraci, percebendo aquele olhar de possessão cruzar o rosto do criminoso, logo disse para atrair a atenção dele:

  — Então, o que mais eu devo saber sobre você?

  Ele estudou a expressão dela, deixando aquele sentimento ruim passar e outro assumir.

  — O que você quer saber?

  — Não sei, a tua infância?

  A expressão agradável desapareceu, uma onda de dor endureceu seus olhos e o fez arrumar cuidadosamente a postura, os lábios dele ficaram tão rígidos que por um instante ela se esqueceu de que eram capazes de sorrir.

  — Não é sobre mim que eu vim falar, me fala sobre você.

  Iraci segurou a taça de vinho com força.

  — Eu tive uma infância boa — ela começou, e explicou todos os eventos marcantes de sua infância. Contar aquelas memórias a fazia reviver tudo novamente, quando Miguel era vivo e o amor que Edilene tinha por ele a fazia radiante. Como foi aprender a andar de cavalo, suas trilhas na floresta, a ocasião em que quase morreu afogada, seu empenho nos esportes e como havia se tornado tão boa que vencia qualquer competição em que participava, e então ela falou sobre seus surtos. Laerte escutou aquilo com algo ardendo dentro dele, uma excitação sombria, um tipo de reconhecimento. Ela se deteve quando entrou na parte de sua adolescência em que tudo mudou, aquela noite fria, com o vento uivando, a chuva batucando forte o telhado.

  — Iraci? —  a mão de Laerte ficou sobre a dela, quando? Ela não se lembrava.

  — Eu matei pela primeira vez aos treze anos de idade — Laerte afastou o tronco da mesa, estudou-a com cautela, mas não afastou a mão dela. Ela prosseguiu — Eu estava de férias, como sempre fui passar elas com minha mãe e meu padrasto. Naquele tempo ela era tão radiante, quando ela passava na rua as pessoas paravam para vê-la passando, ela era tão gentil, falava com todo mundo, eu juro que quando olhava para ela eu a via reluzindo. Bom, em uma noite de tempestade eu tinha passado o dia inteiro me sentindo muito estranha. Era madrugada quando eu acordei escutando um som que parecia de um animal — a garganta de Iraci se obstruiu, a tristeza desceu sobre ela, aquela dor amarga apertou seu peito com tanta força que o ar saiu ofegante de dentro dela — Eu sai do meu quarto, naquela noite meu padrasto ,Miguel, tinha saído para fazer carreto, estávamos sós... Abri a porta do quarto da minha e ouvi, eu... eu ouvi gemidos masculinos. Tinham dois homens no quarto, um estava sobre ela e o outro a segurava — o soluço irrompeu do fundo da garganta, cortando o espaço vazio do restaurante, até mesmo Teobaldo, que ouvia tudo, se virou e lançou um olhar piedoso na direção dela. Ela tragou de um gole só o vinho, para ter coragem de continuar narrando  — Eles, eles estava estuprando a minha mãe, não me viram da porta. Fiquei congelada de medo. Ela estava chorando, mal reconheci a voz dela de tanto medo.

  — Iraci, eu, eu sinto muito — Laerte agora esfregava seus dedos com força.

  — Depois de sentir aquele medo paralisante eu senti raiva, uma raiva que ardeu dentro de mim, eu sabia onde meu padrasto guardava a espingarda, eu fui até ela e a peguei. Chutei a porta, mirei e atirei. O homem que segurava minha mãe nem teve tempo de reagir, os miolos se espalharam pela parede. O segundo me olhou, as calças dele estavam nos tornozelos quando ele levantou, o olhar dele estava repleto de pavor, eu adorei ver o medo dele, eu adorei ver que ele sabia que ia morrer, então eu atirei. Eu lembro do som da voz dele suplicante sendo engolido pelo estrondo do tiro. Fiquei olhando ele agonizar, minha mãe estava encolhida na cama, chorando... Ela nunca mais foi a mesma depois daquilo.

  O salão caiu em um silêncio denso. Os olhos de Laerte estavam divididos entre uma satisfação muito grande (provavelmente pelo fim que levou os estupradores), e uma cautela muito sombria.

  Ele se levantou, contornou a mesa agarrando uma cadeira no caminho, jogou a cadeira ao lado dela e se sentou ali, então a abraçou.

  Lágrimas ainda cruzavam o rosto de Iraci. O corpo dela ficou completamente arrepiado conforme sua cabeça caía para perto do peito do criminoso. Então ela se afastou, limpou as lágrimas e, abasteceu a taça de vinho e a esvaziou novamente.
 
  As dores das memórias estavam lá, tão forte, tão penetrante que ardeu dentro de sua carne, como se os ossos dela estivessem derretendo e afundando. Ela estava um pouco molenga, mas supunha que o vinho era o responsável.

  De repente, a voz de Laerte disse um um tom mais leve:

  — Eu gosto do seu sotaque.

  Ela limpou as lágrimas e sorriu.

  Seu sotaque, ela também gostava. Em Águas Santas, como era de praxe, havia a troca da letra "l" pelo "r". Edilene ainda o tinha intacto, Chico tinha perdido um pouco.

As crianças, na época da escola, em seus primeiros anos em São Paulo, adoravam troçar dela por sua forma de falar, alegavam que falava errado, tentavam dar aula de gramática para ela, até mesmo alguns professores insistiam que ela deveria se esforçar para falar o "português correto" deles. Ela nunca tinha se sentido mal por falar da forma que falava, embora, óbvio, o tanto de tempo afastada de Águas Santas conseguiu retalhar bastante seu sotaque, deixando uma mescla entre um e outro. Quando tinha sentimentos fortes no peito, o sotaque caipira surgia com força.

  — Eu também gosto.

  — E então, o que houve com sua carreira?

  — Papai ficou doente, eu tive que ajudá-lo e.. bem a saúde dele era mais importante que as competições — Ela preencheu a taça com mais vinho, quando olhou para o lado a expressão de Laerte era sombria.

  Um silêncio denso intrometeu-se entre eles. Até que Laerte disse, muito de repente:

  — Eu sou um bastardo, Gael era que deveria estar no meu lugar, mas ele era mole, não conseguiu se provar bom o bastante pro nosso pai, então o velho Saulo dividiu o poder entre nós dois. Nós éramos amigos, ainda assim eu tomei o poder todo pra mim quando consegui.

  Iraci ponderou as palavras de Laerte, inclinando o corpo para o outro lado.

  Ele começou a narrar os eventos mais marcantes de sua vida, algumas passagens, aquelas que atavam um nó em sua garganta, como aquelas em que havia Emily e as torturas às quais ela o submetia, coisas que ultrapassavam o desumano. Ele parecia cada vez mais sério e isso guiava ainda mais sua mão até o uísque.

  A noite havia dado um passo para dentro da madrugada quando Laerte terminou, sorrindo, de dizer como foi viver e crescer com o próprio demônio.

  Iraci tentou decifrar aqueles olhos brilhando, uma manhã tempestuosa de vento e ruínas.

  Por um momento, ele não era um assassino, não era um criminoso, não era a pessoa responsável por quase todos os receios dentro dela, era apenas um garoto assustado.

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⏰ Última atualização: Aug 02 ⏰

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