eu toquei as chamas que você pintou para mim
e a tela ainda estava quente.
o que te faz ainda fazer o mínimo para manter esse fogo que você mesmo já tentou, tantas vezes, apagar? o que te faz reacender a fogueira da brasa sem chamas, até que elas ressurjam das cinzas todas as vezes? às vezes eu penso que você apenas gosta demais de brincar de Deus.
estou de volta a esta casa miserável, mas este não é mais o meu lar, e você nem está aqui. deixo que meu olhar passeie ao redor, pelo chão torto e cheio de rachaduras, com a frustração a subir pela garganta, o inexistente piso que nunca consegui limpar, de fato.
encaro as paredes escuras que eu nunca gostei, respiro o mofo que se acumulou desde o início do ano, de quando viajamos e a casa foi tomada pela infiltração, posso ouvir os cupins se me aproximar dos móveis ou do teto da cozinha.
posso ver também o desalento frio das paredes escuras que eu nunca gostei. respiro o mofo que se acumulou desde o início do ano, de quando viajamos e a casa foi tomada pela infiltração.
mesmo as boas lembranças estão cheias de teias e poeira. você nunca conseguiu manter a casa limpa e a pia vazia se eu não estivesse aqui; e os meus livros na estante nunca pareceram tão fora de lugar, como pérolas num chiqueiro.
e penso que as pessoas são como casas, as coisas só melhoram se houver uma reforma por dentro, pois é o lado de dentro que mais importa.
eu queria colocar fogo em tudo e rezar para que a fogueira primordial trouxesse vida a tudo novamente, mesmo que todos os móveis — com os cupins e tudo —, assim como o resto da casa, fossem gritar e estalar e gemer.
mas apenas vou me sentar do lado de fora e observar a casa-monstro terminar de ruir enquanto me afasto aos poucos, sem precisar mover um dedo.