𝟎𝟎.

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Que tal fazermos as coisas diferentes dessa vez?

O nome dele é Pietro Maggi, quatorze anos, filho único. Seus pais brigam demais e ele se mete em encrenca para chamar atenção. Rotula as pessoas porque acha que tem o direito de fazer isso.

Já entendemos.

Sabe, tem essa frase em Alice no País das Maravilhas: "Entenda seus medos, mas jamais deixe que eles sufoquem os seus sonhos."

Gosto de me lembrar disso de vez em quando. Acho que hoje era um desses dias.

Se for para falar sobre mim, tenho que falar sobre ciclismo de BMX. É o meu sonho. Agora, imagine os medos da minha mãe sufocando o meu sonho.

Essa é a minha vida.

O despertador das sete horas tocou, geralmente é o horário em que eu acordo. Mas hoje não. Estou pronta já faz dez minutos.

Acho que deu pra perceber que minha mãe e eu não somos muito próximas.

Sempre foi assim.

Quer dizer, minhas fotos de infância na parede da escada dizem tudo.

Como aquela do celeiro no interior de Toscana, em que minha mãe está ao lado de uma placa que diz: "Não alimente o burro." E meu pai e eu estamos bem no meio, alimentando o burro. E claro, tem todo meu álbum de aniversário de sete anos, em que estamos vestidos como Jason de Sexta-Feira 13 e Chucky, e minha mãe está usando um lindo vestido azul royal e um sorriso forçado no rosto.

Bom, pra ser justa, meu aniversário é no Halloween.

── Deve estar animada hoje, até acordou mais cedo. ── Essa é minha nona, a incrível e exuberante Loretta Marino Bianchi, ela mora conosco desde sempre, e eu juro que ela nunca envelhece. Minha vó tinha tudo para ser a maior estrela que a Itália já presenciou, infelizmente, a leucemia se espalhou antes que ela conseguisse atingir seu sonho.

Dei o melhor sorriso que consegui para ela.

Minha avó sabia como era desconfortável ter a presença da minha mãe ali para mim. Geralmente, ela já saiu para trabalhar quando eu desço. Mas hoje não, o que era bom.

Em passos apressados chego até a mesa de jantar onde o café já estava posto.

── Aqui, coma muitíssimo para aguentar o dia todo. ── Loretta colocou o próprio omelete meio comido no meu prato, e preencheu um copo com suco de laranja antes que eu pudesse sequer me sentar.

── Mamãe, coma o seu omelete, Matilda tem o dela. ── E Silvia Bianchi, a diretora de cinema, minha mãe.

Ela se levantou e foi lavar os pratos. Sem desejar bom dia, sem me perguntar o que vou fazer hoje, sem me dirigir a palavra. Também não ousei olhar para ela.

Minha vó falava algo sobre a horta que estava cultivando, que cá entre nós, parei de prestar atenção quando ouvi a porta se fechar. Tava na minha hora.

── Conseguiu as chaves?

── Você sabe que sim. ── Ela piscou pra mim enquanto tirava as chaves debaixo do cobertor rosa em seu colo e me entregava.

Eu estava atrás do molho com chaveiro da Torre de Pisa há meses, e agora que estão comigo tenho exatamente três minutos até minha mãe perceber que não está com ela.

Meus tênis fizeram um barulho irritante enquanto eu corria até a porta de vidro que levava até a área externa, quase esbarrando em Camila, a enfermeira que cuida da minha vó.

Para uma casa com apenas quatro pessoas, era grande até demais.

Tomei cuidado para não pisar no recém jardim no meio do quintal.

A edícula marrom estava abandonada há anos. Inicialmente, seria uma área de leitura dos meus pais, mas eles desistiram da ideia e virou um armazém com tudo que se pode imaginar.

Dois minutos.

O ciclismo de BMX combina corridas de alta velocidade em pistas curtas com manobras arriscadas.

Em outras palavras, adrenalina pura.

Tudo o que eu sonho desde os dez anos e tudo que minha mãe abomina desde que conheceu meu pai.

As milhares de chaves sambaram na minha mão numa brincadeira de muito mal gosto enquanto eu tentava ser o mais rápida que conseguia, e tentava descobrir qual era a certa. Depois da sexta tentativa eu parei de contar.

Um minuto.

Mas é o que dizem, sete é o número da sorte. Ou seja lá qual fosse o número que o ditado dizia ser. Para mim, pouco importava, de agora em diante, seria o sete.

Quando abri a porta enferrujada, a bicicleta de estilo livre vermelha escarlate me cumprimentou como uma velha amiga que eu não via há dois anos.

Dois anos desde que meu pai morreu. Dois anos desde que fui proibida a andar de bicicleta novamente. Dois anos desde que minha mãe e eu não trocamos uma palavra.

Dizem que o tempo resolve tudo. A questão é: quanto tempo?

A porta azul do corredor foi aberta num movimento rápido antes dela entrar pelo batente circular da cozinha.

── Esqueci as chaves. ── Ela disse com o olhar treinado em mim.

Tenho que admitir, ela conhece a filha que tem.

Felizmente, ela as encontrou com facilidade no porta chaves.

Ninguém deu muita importância a cena toda. Tomei meu suco com tranquilidade enquanto Camila ajudava minha nona a se levantar da mesa para a cadeira de rodas.

Minha mãe se despediu novamente, e a porta se fechou.

Olhei triunfante para a bicicleta vermelha atrás da bancada da cozinha.

Eu consegui.

── Acham mesmo que ela não desconfiou de nada? ── Camila era uma jovem bonita, com seus vinte e tantos anos e um sorriso gentil. Se mudou para Marina Pequena da Espanha e precisava de um trabalho, e nós, de uma pessoa vinte e quatro horas, sete dias por semana. Minha vó a amava.

── Espero que não. Planejamos isso há duas semanas. ── Loretta sorriu com cumplicidade em minha direção.

Depois que minha mãe começou a agir como uma lunática obcecada por segurança e regras, nona foi a única que me apoiou de verdade. Não sei o que faria sem ela.

── Obrigada vovó. ── Dei um beijo suave na sua bochecha ao mesmo tempo que pegava minha mochila no chão.

Agora a questão é: Como vou fazer para esconder uma bicicleta até completar dezoito anos? E a resposta é...

Rufem os tambores.

Não tem como.

Meu nome é Matilda, e eu tenho quatorze anos. Minha mãe não me deixa ser quem eu sou, por isso to louca pra sair de casa, e me mudar para, sei lá, Roma.

Eu moro em Marinha Pequena a minha vida toda. É uma ilha pequena no meio do nada. O próprio nome já diz, pequena.

Quando eu era criança, parecia um paraíso. Eu adorava a areia e as brincadeiras no sol. Levantava cedo todos os dias, antes mesmo das seis da manhã, e meus pais estavam sempre acordados esse horário, geralmente íamos a praia antes que minha avó acordasse e depois tomávamos um grande pote de sorvete.

Mas como tudo que é bom, uma hora acaba.

𝐃𝐄𝐒𝟒𝐅𝟏𝟎 | 𝐏𝐈𝐄𝐓𝐑𝐎 𝐌𝐀𝐆𝐆𝐈. Onde histórias criam vida. Descubra agora