Três

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Ao chegar em casa, com a mochila pendurada em um dos ombros e o pote com o bolo nas mãos, subi os degraus até o segundo andar do sobrado amarelo, cuja pintura desgastada dava a impressão de que há muito precisava de uma renovação. Bufei de raiva pela milésima vez ao ficar com a maçaneta solta na minha mão, e de novo prometi entrar em contato com o dono da casa para arrumar, ainda que no fundo eu soubesse que isso não fosse acontecer.

Da sala eu podia ouvir o som da Ana mexendo em alguma coisa na cozinha. A casa era pequena e eu pude me juntar a ela com apenas poucos passos. Escorei no marco branco e desgastado da porta, batendo duas vezes para chamar sua atenção.

—Ana? — chamei.

— Estou na cozinha. — respondeu — vem pra cá, vou fazer um bolo pra gente. Ou você quer macarrão? Você pediu então comprei mais.

Nas pontas dos pés, Ana investigava a parte de cima do armário em busca de ingredientes. Pausou suas mãos por um momento para me encarar com grandes olhos expressivos e cativantes, observando com curiosidade o que eu trazia em mãos. A blusa com estampa colorida de personagens que ela usava naquele dia era um lembrete constante de sua personalidade alegre e descontraída. Um contraste com suas feições marcantes e determinadas.

— Não precisa. — disse enquanto aparecia na cozinha, Ana estava encarando o armário, checando alguns ingredientes. — Ganhei um bolo de um amigo.

— Antônio? — perguntou ela, um sorriso nascendo em seus lábios fartos.

Assenti com a cabeça.

— Sério? Ele foi até a loja te encontrar? — Ana comentou, aparentemente intrigada com a história. — Parece que vocês se deram bem mesmo, hein?

— Eu nem acreditei quando o vi lá. Quando Antônio chegou eu já estava fechando a loja. — revivi a lembrança, não conseguindo conter um sorriso. — Achei tão fofo da parte dele.

— Parece que vocês se deram muito bem, hein? — Ana comentou com um brilho travesso nos olhos.

— Ele me convidou para ir à Santa Vila amanhã. — contei.

— Como assim? Do nada? — questionou ela, um tanto desconfiada. Apoiou-se na bancada como uma delegada faria em um interrogatório.

Não quis contar o verdadeiro motivo, sentia que se eu contasse, estaria traindo a confiança de Antônio, não sei. Ou era como se a partir do momento que eu contasse detalhadamente tudo o que havia sido construído naquela noite, tudo o que havia sido particularmente nosso, pudesse se esvair pelos meus dedos.

— Só vamos dar um passeio por lá, aproveitar que não trabalho amanhã. — respondi, esperava que ela ficasse mais feliz, mas talvez a pessoa fora da realidade ali fosse eu.

— Marina, mas você mal o conhece. — lembrou Ana franzindo o cenho.

— Eu sei, mas há tanto tempo eu não me sinto assim. Não sinto que posso ser eu mesma. Desde de... você sabe. — preferia não mencionar lembranças tão doloridas.

Não sei o que eu estava esperando. Aprovação? Provavelmente. Talvez toda aquela áurea mágica tivesse me deixado fora de órbita. Como uma recém mulher adulta eu devia ter considerado que o mundo não é pintado em degradê de rosa, como eu costumava fazer nas minhas ilustrações. Sendo sincera, sabia o bastante da vida para não esperar que fosse assim.

— Eu entendo, Marina. Só quero ter certeza de que você está fazendo a escolha certa. Não quero ver você se machucando. — Ana suavizou um pouco a expressão.

Balancei a cabeça em um gesto de gratidão. Apesar de nossas diferentes perspectivas sobre a situação, sabia que Ana estava agindo por preocupação e cuidado. Mais que minha própria mãe, ela sabia bem aonde meu sentimento havia estado e por quais caminhos precisei passar. Talvez eu fosse ingênua demais e ela soubesse.

Doce Clichê de NatalOnde histórias criam vida. Descubra agora