Irmã de alma.

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O despertador tocou e Daiyu se levantou em alguns minutos, se arrastando. Sua cama se tornou quase uma areia movediça, pois sair estava se tornando uma missão impossível, com aquele gelado do ar-condicionado e as suas mantas quentinhas de pelo sintético que a envolviam.
Acordou apertada para fazer suas necessidades. Então, pegou suas roupas de academia para começar o dia e foi direto para o banheiro. Girou a maçaneta ao tentar abrir a porta, mas não obteve sucesso.
-- Erika, vai demorar muito?
Daiyu fala se escorando na porta do banheiro.
-- Calma beethoven, escolheu logo hoje para decidir ser limpa?
A pianista revira os olhos com a brincadeira de sua colega de quarto com quem não possui tanta intimidade.
Erika sai do banheiro fazendo reverência para Daiyu passar.
-- Obrigada Erika, se não se incomodar, poderia arrumar a bagunça que fez ontem?
-- Putz nem vai dar.
Daiyu pisca incrédula esperando a mais velha completar a frase.
--Que foi? Tô em uma ressaca braba. Dá um desconto.
-- Te dar um desconto? Ontem eu cheguei de um longo dia de treinamento, o que eu não acho que você deve saber o que é, e vi tudo imundo. Você sabe o que é chegar exausta, só querer uma noite de descanso e não conseguir?
-- Calma lá princesinha, você acha que tá falando com quem?
A cada palavra que saia da boca das duas o tom de voz ia aumentando, a esse nível não tinha como parar.           
-- Com uma pessoa irresponsável, e com total falta de empatia.
-- Desculpe se o quarto não tava em perfeito estado pra a senhorita descansar, eu tenho uma vida se te interessa!
Erika gritava mais e mais alto se aproximando de Daiyu, o que deixava a chinesa incomodada e um tanto assustada.
-- Claro e sua vida é só beber e farrear né. Porque é só isso que te vi fazer até agora.
-- Você é uma puta egoísta, xingling.
O silêncio se instaurou da forma mais desconfortável possível para as duas após a última fala, até Daiyu decidir quebrar.
-- Você tem esse domingo.
Ela fala secamente virando de cotas para a morena de tranças batendo forte a porta do banheiro.

                                             .·:*¨¨* ≈☆≈ *¨¨*:·.

Fazia sua caminhada no campus, para começar o seu treino. Alternando entre trotar e correr, em direção a academia que ficava em um dos anexos do conservatório. Como muitos alunos realmente moravam na RoseThorn, o conservatório construiu um anexo, somente para melhorar a qualidade de vida. Começou com apenas uma cafeteria, mas atualmente possui desde mercadinho, para que não opta pela comida feita pela cantina do conservatório, até uma academia completa gratuita, para os alunos.
Sentia o seu corpo mesmo em movimento, gelado. Suas mãos, ainda estavam trêmulas pela recente briga com a colega de quarto, Erika Lake. Não tinha o costume de brigar e mostrar tão livremente suas reais opiniões. Culpou a sensação de estar sobrecarregada, por aquela grande desavença que terminou em uma fala xenofóbica.
Daiyu sempre fingiu não se importar com esse tipo de coisa, mas, apesar de estar acostumada a ouvir esse tipo de coisa, desde que se mudou para o Canadá, aquilo doía no seu bem mais íntimo, o ego.

Um ano e 4 meses no conservatório, mesmo assim, as pessoas costumavam a chamar de "japa" ou "olhinho puxado". Não se envergonha de sua cultura, país nem traços, pelo contrário. Acreditava que graças a seu país, dono de uma cultura extremamente rigorosa, conseguiu chegar até onde chegou. Mas a única coisa que a fazia ser lembrada, eram os seus traços diferentes, isso era o que a incomodava. Não que fizesse questão de ser conhecida no conservatório nem nada disso, mas um reconhecimento pelo seu esforço diário cairia muito bem.

A porta da academia abriu automaticamente com a sua aproximação. Mudou sua playlist tranquila para uma específica motivadora para os treinos. Até conhecer Sophia, vivia de música clássica, por ter crescido ouvindo esse tipo de música em casa. Mas Sophia vinha a obrigando a escutar seus artistas favoritos como The Weeknd, Ariana Grande, Lady Gaga e outros dos quais não lembro.

Daiyu passava pelas máquinas, vendo vários rostos conhecidos do conservatório. Um deles sendo Loren Meredith, a bailarina destaque do ano passado. Foi para a parte das esteiras, usando uma que estava a duas esteiras de distância de Loren. Daiyu nunca tinha conversado com a garota, então não fez questão de cumprimentar.
Colocou a esteira em 10km/h e começou o seu treino. Sua mãe sempre a incentivou a praticar exercícios físicos desde pequena, mesmo que o incentivo tenha vindo em formato de críticas ao seu corpo. Por ser metade Canadense, seu corpo tinha mais gordura em algumas regiões, o que a diferenciava da maioria das meninas chinesas. Por isso Daiyu sempre teve corpo de atleta, e se destacava muito em esportes na escola. Por um tempo, considerou seguir uma carreira no atletismo, mas, sua mãe não recebeu a ideia muito bem, não a apoiou no plano.

  Estava a alguns minutos correndo, e ainda estava intacta, percebeu um movimento na esteira próxima a ela, a que Loren estava usando. Olhou de relance para o lado, e viu o garoto da recente publicação da YSR. Estava conversando com Loren, enquanto ela ainda usava o aparelho. Diminuiu o volume da música em seu fone, e diminuiu a velocidade da esteira, para se concentrar melhor na conversa alheia.
-- Eu tô te dizendo, Loren.
A garota soltou uma risada alta que ecoou na academia.
-- Sua família viu?
-- Me ligaram hoje cedo, disseram que me amavam e me aceitariam de todo jeito.
O garoto falava de um jeito acelerado, com uma expressão zangada.
-- Isso é tão fofo!
-- Seria fofo se fosse verdade. Mas eu NÃO sou gay, Loren.
-- Ainda não entendi o problema, migo.
-- Eu só não quero que espalhem mentiras sobre mim, ainda mais com coisa séria. Além disso, você viu os comentários?
-- Aí nem liga, você sabe que o povo daqui é doente.
O garoto se sentou no chão, passando a mão por seus cabelos castanhos, provavelmente esperando Loren terminar a sua sessão.
Daiyu pegou sua garrafa de água e seu celular e saiu da esteira, deixando apenas Loren e Jaden no setor de cardio.
Foi em direção aos bebedouros encher sua garrafa. Ligou seu celular e a primeira coisa que viu foi uma notificação de uma mensagem de sua amiga.

Soph loirinha S2:  Cadê você gatona?
Soph loirinha S2:  12:20 e tu não chegou

Daiyu digitava rapidamente uma resposta a sua amiga, com uma só mão, enquanto enchia sua garrafa com a outra.

Eu:  Me espera, já tô indo.
Eu: tô levando novidades.

Soph loirinha S2:  arrumou um namorado? 😍

Bufou com a resposta de sua amiga, poupando o trabalho de responder a gracinha e se apressou a sair da academia do conservatório.

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De longe conseguia ver o cabelo loiro de sua amiga em uma das mesas do refeitório interno, que estava quase vazio por ser um domingo. Dia que a maioria dos estudantes costumavam passar em casa, ou dar algumas saídas.
Às funcionárias do local montaram seu prato, que sempre consistia em arroz puro com frango desfiado. Pegou sua bandeja, com seu prato e um suco de uva em caixinha e se dirigiu direto para a mesa onde se encontrava sua amiga.
-- Finalmente né. O sarro já tava esfriando.
-- Desculpa Soph, aconteceu muita coisa hoje. Não foi uma manhã normal.
Daiyu pôs sua bandeja na mesa e se sentou no banco. Despejando todos seus pertences na mesa, secando o suor em sua testa.
-- Calma lá samurai. Respira antes de contar.
-- Briguei feio com a minha colega de quarto
-- Aquela esquisita da Erika Lake?
Sophia fala com a boca cheia, mastigando seu almoço nada saudável.
-- Eu acho que vocês se dariam bem. Ela é desleixada que nem você.
Daiyu fala a sua amiga enquanto sorri.
-- Hahaha. Desembucha logo rainha da comédia.
-- Pela primeira vez tentei corrigir a bagunça dela, me descontrolei um pouco e ela não gostou nadinha.
-- Daiyu Shen brigando? Meu Deus, eu sempre perco essas coisas.
-- Foi a primeira e última vez!
Daiyu dá a primeira garfada em seu almoço, que desceu quase a pulso. Não estava com apetite suficiente.
-- Você viu o novo post do YSR?
-- Eu vi, o pessoal viaja demais.
-- Tu não acredita, não? Ele parece que foi esculpido por deuses, e nunca tá com nenhuma garota.
-- Bom, pelo que eu ouvi, ele não é não.
-- Pelo que você ouviu? Você tá fofocando Yuzinha? Quem diria hein, briga e fofoca no mesmo dia...
Daiyu revira os olhos.
-- Conta logo!
A chinesa conta tudo sobre o que ouviu e viu na academia enquanto estava treinando para sua amiga, que fica surpresa com toda aquela informação.
-- Caralho Daiyu, que orgulho!
-- Eu deveria escutar minha mãe quando ela diz que você é uma má influência.
-- Mais uns dias aprendendo comigo e você vai deixar essa comida de passarinho de lado.
-- Eu ganhei um quilo, mês passado. Tô tentando recompensar.
-- Amiga teu corpo é perfeito, não sei por que tu foca tanto nesses detalhes.
-- Minha mãe sempre diz que-
A chinesa não termina sua frase, por ter sido interrompida por Sophia, que aponta a faca cega do conservatório para Daiyu.
-- Se tu falar "minha mãe" de novo, eu não respondo por mim. Desencana dessa general.

O resto do dia passa lentamente, mas ao lado de uma pessoa extremamente querida. Em toda sua vida, Daiyu nunca tinha feito uma amizade que trazia tanta importância para ela. Sophia era preciosa, não por ser uma ótima influência, nem nada perto disso. Mas, porque ela fazia os seus dias mais coloridos, trazendo o equilíbrio que estava precisando nos seus 18 anos de vida que passou sem uma pessoa como ela.
Sophia não tinha uma relação tão estável com seus pais, então, alguns finais de semana, decidia passar na companhia de Daiyu. Entendia a vontade de sua amiga de não sair do conservatório. Mesmo sendo difícil para a loira, deixava de ir para as festas nos centros de Toronto, mas tudo valia a pena, porque o momento com sua irmã de alma era mais importante que qualquer bebida, qualquer música que pudesse dançar e qualquer garoto que pudesse beijar.

Sonata em notas falsas.Onde histórias criam vida. Descubra agora