VII - Partida.

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Pov: Marta Huffman

Eram duas e meia da madrugada.

Eu analisava as deformidades do teto do nosso quarto tentando adormecer; todos aqueles pedaços de madeira envelhecidos e encarrapitados me hipnotizavam pelas últimas noites em claro.

Os dias passados foram exaustivos o suficiente para me enlouquecerem. Me sentia presa a todo o momento enquanto me contorcia desconfortavelmente, além de vozes em minha cabeça que por muito tempo me atormentavam. É claro que, com tantos anos, acabei me acostumando. Levei meu olhar à porta do quarto me convencendo a sair, enquanto pensava sobre a voz que me dizia que era o momento certo, e quando menos pude perceber, eu estava me cubrindo com minha capa preta de couro de modo que apenas meu cabelo loiro fosse visível.

Virei para o lado, e observei a jovem que dormia profundamente após o dia tão cansativo que tivemos. Lembro-me de ter passado as últimas três horas examinando cada detalhe da garota adormecida, pois partia-me o coração em saber que não a veria tão cedo.

Infelizmente, este é o preço a se pagar pela desonestidade. Mas, de qualquer forma, era o que tinha que ser feito.

Encarei o relógio, notando que já estava na hora, causando uma onda de angústia em meu corpo. Eu tenho me sentido cada vez pior em carregar este sentimento, e ainda que fosse para o bem e a segurança de Jennie, uma parte de mim desejava ficar.

Contra a minha vontade, levantei-me do colchão silenciosamente e me agachei próximo ao corpo da garota mais nova. Sua face estava tranquila e sua respiração era suave e calma, mas apenas por enquanto. A sua pacífica alma logo se contorceria em desespero quando soubesse de minha partida.

Sutilmente, abaixei meu rosto e beijei sua testa com certo cuidado para garantir que a mesma não acordasse. Sem erguer a cabeça novamente, me aproximei de seu ouvido.

- Eu vou voltar, Bowen, isso não é um adeus. - Aperto meus olhos suavemente marejados. - Algum dia...eu prometo. Por favor, acredite em mim. - Sussurro.

Dou uma última olhada de relance para seu rosto doce, e decido que não há mais o que lamentar. Suspiro e me levanto novamente, caminhando até a porta com certa cautela.

Apesar da inúmera quantidade de afazeres, as últimas semanas foram incrivelmente as mais tranquilas de toda a minha vida, ou morte. O prazer de viver uma rotina suave sem se importar com os problemas era surreal, algo que eu definitivamente sentirei falta.

Desci as escadas tentando fazer o mínimo de ruído, e vou admitir, com um pouco de medo também. A sala de estar estava completamente escura, iluminada somente pelo luminar delicado das quatro luas que orbitavam o planeta. Tateei a parede afim de encontrar a porta, e não demorou para que eu finalmente deixasse a casa.

Tranquei a porta ainda angustiada e caminhei alguns passos firmes pela estrada de pedra até avistar um zaldi ranzinza próximo ao bosque. O zaldi era o animal no qual puxaria a carroça de madeira já abastecida com alimentos, roupas, e principalmente, energia.

Me aproximo um pouco mais, podendo observar uma outra pessoa encapuzada, encostada contra uma árvore ao lado. Quem visse de longe, mal notaria sua presença misteriosa ali. Olho para os lados para verificar que não havia mais ninguém, e que eu não estava sendo seguida.

A figura logo percebe minha aproximação e levanta o rosto, afim de me encarar.

- Está pronta para ir, senhora? - Kallias não perde tempo para falar.

Eu abaixo a cabeça suavemente e subo no grande veículo de madeira. Kai sobe logo em seguida, sentando-se na minha frente, e não demora para bater a rédea do zaldi.

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