I03I - Carta

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Um vento inoportuno entra pela janela do quarto e, antes que eu possa prever sua força, espalha as dezenas de tentativas de cartas pelo chão. 

Cartas que eu tinha feito para explicar meu futuro desaparecimento, iniciadas com "Não me procurem depois de lerem isso..." e encerradas com "Espero que entendam, não há nada que pudessem fazer para me impedir."

Pareço egoísta, sei que sou, mas nunca gostei de despedidas. Uma carta simples era tudo que eu podia oferecer para dar-lhes uma resposta e livrar minha consciência.

Junto os papéis manchados pela tinta fresca e depois de separar a melhor entre as piores, a escondo embaixo de uma placa do assoalho, me livro das demais as jogando no fogo da lareira. 

Três dias. Era o tempo que Eksean tinha me dado, para que eu me preparasse para deixar tudo para trás e ir com ele até o... inferno? 

Crescendo em uma vila isolada do mundo, comandada pela ignorância e o medo, havia muitas coisas que eu não conhecia e o domínio dos Esimus, o clã de Eksean era uma dessas coisas.

Desdenhosos e manipuladores, os Esimus reinavam com luxúria em seu submundo de carne, sombras e fogo. Era o que eu havia lido, certa vez, em um livro que contava a história das Casas Antigas, as raças fundadoras do Continente.

Dez meses atrás, antes de eu deixar a Cidade do Norte, Eksean havia aparecido para exigir sua parte do acordo, um favor que eu não poderia recusar se quisesse barganhar novamente.

Quero que recupere algo que já me pertenceu, mas devido a minha ausência foi levado por um de meus semelhantes até o meu antigo lar.

Ausência dissera ele, não prisão. A palavra me incomodava como uma farpa no dedo.

Havia uma grande vala entre o que eu sabia sobre Eksean e o que estava disposta a saber, assim quanto menos eu me envolvesse com ele e seus motivos, mais fácil seria cumprir nosso acordo e então, fazer um último, oferecendo o que ele desejasse, para que me levasse até August.

Fecho a janela do quarto vendo o pôr do sol levar consigo toda a luz diurna. Então, escuto alguém bater na porta.

Antes que eu tenha a chance de abri-la, Edmon e duas serviçais do castelo entram. As mulheres carregam caixas de diferentes tamanhos empilhadas nos braços. 

- O que é isso? - Pergunto para Edmon, que para à minha frente. 

Seus olhos escuros passeiam por mim como se ele me avaliasse, posso imaginar o que vai sair de seus lábios em seguida.

- Planejava participar do banquete vestida desse jeito? - Sua voz carrega um ar de incredulidade. 

- Não vou para o banquete. - Respondo, cruzando os braços. 

Eventos no castelo me faziam perder o sono, o sentimento de que a qualquer momento um lican me reconhecesse como a liones arrogante que fui e decidisse ter sua vingança, me fazia ter pequenos tremores nas mãos, passei a usar luvas por isso. 

Edmon suspira com uma falsa decepção, então se inclina sobre os pés e sorri pra mim, usando a carta que sempre usa quando quer me obrigar a fazer algo. 

- Irá sim, prometeu-me ajudar com a tarefa de Lukoi, e o primeiro banquete oficial do meu breve reinado como Líder Supremo dos Licans não é algo a ser ignorado. - Diz, colocando as mãos para trás do corpo e andando a minha volta.

- Céus, Edmon, é apenas um jantar para os soldados. - Falo frustrada.

- Então não vai sofrer em me acompanhar por algumas horas, apenas para cumprir as formalidades. 

Ele para em frente a lareira onde o papel ainda está queimando e encara as cinzas, depois me olha com a cara de quem quer fazer perguntas. 

- Precisa de mais lenha para o quarto ou decidiu escrever poemas tristes para sua nova personalidade?

Aponto para fora do quarto, sabendo que, apesar de sua audição excepcional, ele não conseguiria ler o que está escrito nas cartas.  

- Vá embora, encontrarei com você mais tarde. - Falo.

Ele sorri novamente, parecendo satisfeito, as covinhas em suas bochechas se aprofundando. As serviçais começam a arrumas as caixas em cima da cama, revelando vestidos e acessórios.

Antes de deixar o quarto por completo, Edmon para no arco da porta.

- Tente não ficar tão bonita ou posso acabar a perdendo para algum dos soldados.

Rolo os olhos para sua provocação, e ele desaparece no corredor. 

Eu sabia muito bem o que os licans que não conheceram Aysha Nowak pensavam sobre mim, Layla, a excêntrica criada pessoal do Lukoi. Eu os irritava com minha presença, uma humana de origem desconhecida que recebia a proteção do Lukoi, assim como irritava os humanos que trabalhavam no castelo, por andar livremente sem ter uma marca de propriedade tatuada em meu pulso.

Me aproximo das caixas e escolho um vestido de um tom azul escuro e acessórios prateados, joias com prata de verdade que podem ferir licans.

Ignoro os olhares de inveja e raiva das serviçais quando falo minhas escolhas em voz alta e vou até o quarto de banho, elas não se oferecem para me ajudar e eu certamente as rejeitaria se assim fizessem.  Não sou alguém que precisa ser servida e não quero ter mãos extras, acidentalmente, me afogando na banheira.

Em outra vida, recebi a ajuda de criadas que pude chamar de amigas, por isso as convenci a irem para um lugar seguro, antes da guerra pela quebra do Tratado começar, com dinheiro o suficiente para não terem que servir a mais ninguém.

Infelizmente, não consigo amarrar sozinha as fitas em minhas costas que ajustam o vestido. Arfo de dor quando sinto alguma coisa pontuda se fincar em minhas costas. 

- Algo me espetou. - Digo para a serviçal que está ajustando o vestido. 

- Deve ser apenas uma ponta mal acabada do brocado, senhora Layla. - Responde. 

Consigo ver pelo reflexo no espelho ela trocar olhares com a segunda serviçal que está organizando as joias e sorrateiramente escondendo um anel na manga do vestido. 

Posso aceitar que roubem o que compro para mim, mas roubar de Edmon, que precisa manter sua imagem de Lukoi, o rei dos licans, com a rigidez de um tirano, é como se elas assinassem suas próprias sentenças de morte. 

- Vou ajuda-la a colocar as... - Começa, quando me vê andando até ela.

Esbofeteio seu rosto com um único tapa que a faz virar a cabeça.

- Se quer roubar algo, ao menos espere que eu saia do quarto. 

Ela pousa uma mão sobre o rosto, olhando-me atordoada com uma mistura de surpresa e medo. Posso ouvir a outra serviçal se distanciado de nós com passos leves.

- Desculpe, senhora Layla, eu... - Diz, começando a gaguejar.

- Vão embora. - Falo firme. - E tenham certeza que não encontraram piedade se forem pegas novamente.

Sem demora, elas deixam o quarto e eu posso ver no espelho um reflexo que não vejo a muito tempo.


Sombrio - Vermelho vol.2 [HIATO]Onde histórias criam vida. Descubra agora