𝘊𝘰𝘮𝘰 𝘦𝘶 𝘦𝘳𝘢 𝘢𝘯𝘵𝘦𝘴 𝘥𝘦 𝘷𝘰𝘤𝘦̂ a última carta de amor

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Todos tiveram a mesma ideia.
Enquanto pensa no melhor lugar para se posicionar, o celular toca.
É Rupert.
— Estou chegando. Estou tentando pegar um táxi.
Ele vislumbra um táxi livre se aproximando pelo outro lado da rua e começa a ir em sua direção, desejando que ninguém mais o tenha visto. Um ônibus passa roncando, seguido de um caminhão que freia de maneira estridente, impedindo-o de ouvir o que Rupert diz.
- Não estou ouvindo, Rupe — grita, por sobre o barulho do trânsito. - Você vai precisar repetir. - Meio isolado em uma ilha de trânsito, com o trátego fluindo por ele como uma correnteza, vê a luz alaranjada sobre o capô do táxi, indicando que o veículo está desocupado, e estica a mão livre, na esperança de que o motorista consiga vê-lo através da chuva forte.
- Você precisa ligar para Jeff em Nova York. Ele ainda está acordado, à sua espera. Tentamos falar com você na noite passada.
— Qual é o problema?
- Um empecilho legal. Duas cláusulas que eles estão protelando por causa de duas alíneas... assinatura... papéis. - A voz é abafada por um carro que passa, os pneus silvando na água.
- Não entendi.
O táxi o viu. Está reduzindo a marcha, esguichando um fino borrifo de água à medida que anda mais devagar do outro lado da rua.
Will percebe que o homem mais adiante diminui o passo, desapontado, ao perceber que não alcançará o táxi a tempo. Ele tem uma íntima sensação de vitória.
- Escute, peça a Cally para colocar a papelada na minha mesa - grita. - Chego em dez minutos.
Olha para os dois lados, então baixa a cabeça ao dar os últimos passos para atravessar a rua em direção ao táxi, já com o destino
"Blackfriars" na ponta da língua. A chuva se infiltra pelo espaço entre o colarinho e a camisa. Ele vai chegar ao escritório ensopado só por ter

andado aquele pedacinho na chuva. Talvez precise mandar a secretária comprar outra camisa.
— E temos de resolver essa questão importante antes que Martin chegue..
Ele olha em direção ao chiado, o som rude e estridente de uma buzina. Vê a lustrosa lateral do táxi negro diante de si, o motorista já abaixando o vidro, e pelo canto do olho nota algo que não distingue direito, que está vindo para cima dele numa velocidade incrível.
Ele se vira e, nesse milésimo de segundo, percebe que a coisa vem em sua direção, que não há como sair da frente. Surpreso, abre a mão e o BlackBerry cai no chão. Ouve um grito que talvez seja seu. A última coisa que vê é uma luva de couro, um rosto dentro de um capacete, o choque nos olhos do homem refletindo o dele próprio. Há uma explosão quando tudo se parte em pedaços.
E então não há nada.

São cento e cinquenta e oito passos entre o ponto de ônibus e minha casa, mas é possível esticar esse número para cento e oitenta se você não estiver com pressa, ou, por exemplo, se estiver usando sapatos de plataforma. Ou se estiver com os sapatos que você comprou num brechó e que possuem borboletas nos dedos e nunca ficam bem presos nos calcanhares, o que explica por que custaram a pechincha de uma libra e noventa e nove centavos. Virei a esquina na nossa rua (sessenta e oito passos) e logo pude ver a casa — uma casa geminada de quatro quartos numa sequência de outras casas geminadas de três e quatro quartos. O carro de papai estava do lado de fora, o que significava que ele ainda não tinha ido para o trabalho.
Às minhas costas, o sol se punha atrás do castelo Stortfold, sua sombra escura escorrendo pela colina feito cera derretida para me engolir. Quando eu era pequena, costumávamos fazer com que nossas sombras alongadas participassem de tiroteios, nossa rua era o O.K.
Corral. Em outro dia, eu poderia contar tudo o que vivi nessa rua: onde papai me ensinou a andar de bicicleta sem rodinhas; onde a Sr Doherty, com sua peruca torta, fazia bolos galeses para nós; onde Treena, aos onze anos, prendeu a mão numa cerca viva e perturbou um ninho de vespas nos fazendo correr aos gritos por todo o trajeto até o castelo.

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