02.

703 72 6
                                    

Uma chuva leve abençoava o Brooklyn enquanto nos aconchegávamos na barraca que eu e Josh considerávamos nosso lar. Descansávamos sobre o colchão de ar, envoltos nos cobertores que conseguimos, desfrutando de nossas conversas até que a fome se tornasse uma necessidade inadiável.

— Estou faminta… — comentei, o eco do meu estômago vazio ressoando no pequeno abrigo.

— Eu também… — ele suspirou, seus cachos escuros e longos repousando sobre o travesseiro, a pele negra irradiando sob a luz de um poste próximo que esgueirava-se pelas brechas da barraca. Num impulso, ergui-me do colchão, calçando rapidamente minhas botas desgastadas e retirando vinte dólares da bolsinha onde guardávamos nossos ganhos do dia. — Para onde vai, Aguie? — ele perguntou, seu tom carregado de preocupação.

— Vou ao posto ali perto buscar comida para nós, com o dinheiro que aquele senhor me deu por ter cuidado do carro dele. — expliquei, percebendo a seriedade em seu olhar. — Não se preocupe, a chuva está fraca, volto logo.

Se eu tivesse permanecido mais cinco segundos naquela barraca, talvez Josh tivesse me convencido a ficar. Ele estava preocupado, mas não era com a chuva. Sua inquietação era sobre o que eu encontraria no caminho. E quando relembro o que aconteceu, desejo ardentemente nunca ter saído daquela barraca.

***

O trajeto até o posto de gasolina foi uma jornada fria e encharcada, uma experiência comum sob a chuva incessante. Nossa vizinhança abrigava pessoas sem lar, tornando o ambiente não exatamente perigoso pelos indivíduos, mas pela urgência e necessidade que todos compartilhávamos. A luta pela sobrevivência podia levar cada um a extremos inimagináveis.

Caminhava com passos apressados, buscando escapar do aguaceiro contínuo. Vestia uma blusa desgastada, seu capuz parcialmente protegendo meus cabelos loiros que já se grudavam no colo. Mãos afundadas nos bolsos, olhos azuis firmes no horizonte. Um discreto sorriso despontou quando avistei à distância o posto de gasolina, com sua fachada vibrante em vermelho e amarelo, o icônico boneco convidando para a entrada.

Adentrando a loja de conveniência, o acolhimento do calor interno me arrancou um suspiro de alívio. Pendurei o casaco na entrada e me encaminhei ao interior, examinando os produtos nas prateleiras enquanto seguia para o banheiro antes de ir ao caixa. Adentrei o banheiro feminino e me aproximei do espelho para um rápido check-up na minha aparência.

Eu tinha preocupações maiores, mas a aparência ainda me importava. Aos 13 anos, já era considerada bonita, com cabelos loiros perfeitos, olhos azuis e um corpo esguio e atlético para a minha idade. Minha avó costumava brincar, dizendo que eu possuía uma beleza quase divina, algo que eu achava graça na época.

Abri a torneira, sentindo a água quente tocar meus dedos. Peguei um pouco de sabonete e lavei meu rosto, um tanto sujo pelo trabalho. Em seguida, tirei um pente simples do bolso para arrumar os cabelos. Ao final, me sentia mais apresentável. Dirigi-me à máquina de secar num canto, tentando tirar um pouco da umidade da blusa e das mãos antes de seguir para o caixa.

***

— E você tem dinheiro suficiente para pagar por isso, bonitinha? — perguntou o atendente da loja quando pedi duas fatias de pizza salgada e uma garrafa de refrigerante. Suspirei.

Aquilo acontecia com mais frequência do que seria saudável. Naquela região, repleta de pessoas em situação ainda pior que a minha, o preconceito emergia em situações como aquela - um atendente desavisado presumindo que eu pedia por necessidade, não para comprar. Maldito capitalismo.

Respondi simplesmente colocando uma nota de vinte dólares no balcão. A expressão dele mudou de julgamento para neutralidade num piscar de olhos, levantando-se da cadeira.

— Só um minuto, senhorita. — disse, saindo para fazer o pedido, e eu revirei os olhos.

Enquanto esperava, peguei uma das revistas de moda próximas ao balcão e comecei a olhar as roupas, imaginando-me naqueles modelitos. Nesse instante, o sininho acima da porta tocou, anunciando a entrada de outro cliente.

Por algum motivo que naquele momento não compreendi, senti um calafrio na espinha. Ao virar a cabeça na direção do recém-chegado, vi uma mulher de meia-idade, cabelos escuros e uma jaqueta de couro. Um sorriso sinistro adornava seu rosto enquanto se aproximava.

— Pensou que conseguiria se esconder de nós com tanta facilidade, filha de Afrodite? — perguntou, e naquele momento eu jurei que ela não estava sóbria.

Se essa pergunta dela já era estranha, o que se seguiu foi ainda mais bizarro; a forma da mulher começou a mudar até sua jaqueta de couro se transformar em asas, transformando-se em uma espécie de pássaro estranho e assustador.

— Mas que porra... — comecei, a revista caindo da minha mão enquanto dava passos para trás e ela para frente, tentando me alcançar.

Quando aquela coisa levantou voo, corri desesperada para a porta da loja. Consegui avançar alguns passos, mas antes de alcançá-la, aquela criatura me agarrou, empurrando-me contra uma das prateleiras, derrubando-a com o meu peso num estrondo alto. Gemi de dor ao cair, sentindo meu corpo todo doer. A criatura avançou sobre mim e comecei a chorar de medo.

— Nunca peguei uma de Afrodite antes. Espero que minha recompensa seja boa... — começou a dizer, aproximando a mão do meu pescoço.

Imóvel, pensei que morreria ali e acordaria no colo da minha avó no céu. Antes que aquela coisa acabasse comigo, a porta da loja foi arremessada para trás, e algo com o som de cascos de cavalo entrou, correndo até nós e lançando uma espécie de adaga no monstro sobre mim. A criatura se desfez em uma nuvem de poeira malcheirosa ao ser atingida no ombro.

Estava em choque, sem forças, tão assustada que senti que desmaiaria. Antes que isso acontecesse, olhei para o rosto do meu salvador, me deparando com um Josh que não era exatamente um Josh, seu corpo metade bode.

***

— Agnes, pelo amor dos deuses! — exclamou Josh.

Ao abrir novamente os olhos, percebi estar no banco traseiro de um carro em movimento, minha cabeça repousando sobre algo macio com aroma de estábulo. Sentia um frio gelado em minha testa, provindo de um saco de gelo pressionado sobre a região dolorida.

— Calma, estou apenas tentando amenizar um pouco a dor. Cuidaremos disso adequadamente quando chegarmos ao acampamento… — Josh falava com voz tranquila, mas minha mente parecia uma confusão.

Ao me erguer, uma dor aguda na cintura me alertou. Olhei para baixo e vi o sangue, indicando uma possível costela quebrada. Lembranças da loja de conveniência começaram a retornar, fazendo tudo girar ao meu redor. Encostei a cabeça no banco, sentindo náuseas pela confusão e pelo movimento do carro.

— Josh, eu morri? Você é o Josh do céu? — foi minha primeira pergunta, observando onde minha cabeça repousava: as pernas bodescas de Josh. — Meu Deus, eu definitivamente morri...

— Aguie… — ele disse, recolocando o saco de gelo na minha cabeça, mas antes que pudesse afastá-lo, reclinou o banco. — Sei que tudo parece confuso agora, mas vai fazer sentido logo. Por enquanto... — ele me puxou para seu colo, e eu não resisti, embora achasse que estava delirando. — Descanse. Está tudo bem, nada de ruim vai acontecer.

A voz tranquila do meu melhor amigo acalmou meu ímpeto. Com carinho em meus cabelos e uma música que ele começou a cantar usando a sua voz melodiosa e que dava sono, apesar da dor e confusão, acabei adormecendo, a exaustão tomando conta de mim.


***
NOTAS DA AUTORA.

Uma feliz véspera de ano novo e uma ótima leitura! 🫶🏻

𝐓𝐇𝐄 𝐋𝐄𝐆𝐀𝐂𝐘 • Clarisse la Rue.Onde histórias criam vida. Descubra agora