Prólogo

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Promessas e segredos caminham juntos. Muitas vezes prometemos algo em silêncio a nós mesmos, guardando aquelas palavras em nossos corações. Em outras ocasiões, verbalizamos uma promessa a outra pessoa, e isso se torna como um segredo compartilhado, dito ao mundo, mas só quem estava naquele momento pôde ouvir.

Quando eu era criança, não entendia tanto a importância de promessas — nunca devemos fazer uma que não podemos cumprir, como meu pai sempre diz. E minha mãe gosta de acrescentar que devemos manter uma promessa até o momento em que somos capazes de cumpri-la e sermos honestos quando não conseguirmos mais, porque as circunstâncias da vida mudam como o fogo, sempre em movimento.

No entanto, sempre entendi um pouco de segredos. Afinal, eles estão em minha natureza, como um sussurro constante no mundo, dádivas e maldições que sou capaz de ouvir por ter nascido para acolhê-los em minha energia, atender os segredos que queimam nos corações.

Eu me lembro do dia em que essas duas entidades — promessas e segredos — colidiram em minha vida. Elas se chocaram, e eu só percebi as consequências dos tremores desse abalo sísmico alguns anos depois.

Ao contrário do que muitos podem imaginar, todo deus vem de algum lugar. Nós nascemos, somos carregados como bebês por nossas mães e até mesmo a Conselheira, a primeira deusa de nosso panteão, surgiu de um ventre, mas sua história se perdeu um pouco no processo. Então, eu um dia fui uma criança, de cabelos ondulados rebeldes, olhos grandes demais de um tom ou dois mais escuros que minha pele marrom.

— TE PEGUEI!

Lembro de minha voz ecoar no pátio do templo, entre colunas de mármore. Esqueci de acrescentar o comentário de que era uma criança muito, muito escandalosa.

— Eldurian! — Shira ralhou, tão pequena naquela época, os cabelos azuis em tranças elaboradas feitas por sua mãe sacerdotisa, os olhos translúcidos como a água à qual sua energia responde — Você deveria falar um pouco mais baixo!

— Ele está tentando competir com as gralhas da floresta. — Ascian alfinetou, e eu mostrei língua a ele. Seus olhos tinham um brilho cinza quando me encararam, como se uma névoa dançasse neles, uma boa personificação de sua aptidão com as nuvens.

Aqueles dois eram meus melhores amigos, frutos da nova geração do panteão que nossos pais ocupavam, fossem eles deuses ou sacerdotes. Poucas eram as crianças imortais que nasciam por vez, então sempre brincávamos uns com os outros, e nós três tínhamos uma proximidade a mais.

— Desculpe, machuquei seus ouvidos? — caminhei até Shira e estendi a mão, para que ela pudesse sentir de que lado me aproximava. Shira era cega, mas isso não impedia nossas brincadeiras, ela dizia que podia sentir as gotas de água em todo lugar.

O que incluía nosso suor.

Acho que por isso ela nos achava tão rapidamente, principalmente Ascian, ele sempre estava suado. Brincadeira, eu só estou tentando pintar uma reputação ruim para ele, mas imagine, conhecer alguém pelos fluidos corporais, desde a água que circula pelo corpo, à água da chuva que toca a pele, essa é uma camada de intimidade que poucos experimentam...

Desculpe, percebo que perdi meu floreio artístico alguns parágrafos para trás. Mesmo sendo um exímio contador de histórias — é como passo meu tempo livre, é como tenho maior contato com os seres humanos — nunca tomei tempo para contar a minha história, e isso por si só é diferente.

Certo, chega de me enrolar.

Nesse dia, brincávamos de perseguir um ao outro por algum templo, provavelmente o de minha mãe Firaine, a deusa do fogo, mas a localização não importa tanto assim. O de maior destaque é o que vem a seguir, pois foi quando descobri o peso de uma promessa.

— Acho que eles já estão acostumados aos seus gritos. — lembro de Shira responder, toda sorrisos — Mas já que os machucou, deveria pagar um preço por isso.

Ela se virou na direção de Ascian e, como se o silêncio deles carregasse alguma mensagem, ele se aproximou de nós e eu fiquei impedido de escapar da armadilha conjunta: um ataque de cócegas, desferido impiedosamente em minhas costelas.

Meus pulmões se encheram de ar e eu joguei a cabeça para trás. Eu estava gargalhando e as risadas em coro dos dois acompanharam em sequência, contagiadas pelo meu exagero. Esse era o lado positivo de ser escandaloso, eles adoravam minha gargalhada, e ter a chance de fazê-los rir trazia uma espécie de conforto ao meu coração, transbordando meus sentimentos.

— Isso é injusto! — exclamei quando não aguentava mais, segurando as mãos dos dois da forma que podia.

— É sempre tão bom te ouvir rir. — Shira ainda soltava risadinhas, melodiosas como água corrente.

— Por isso nós sempre gostamos de te provocar. — Ascian passou um braço por meus ombros, puxando-me para perto enquanto sorria com sua pose atrevida. Se eu soubesse que essa postura iria acompanhá-lo até a idade adulta, teria feito algo para impedir toda aquela presunção.

Não posso negar que era uma das coisas que mais me fazia rir nele, e me sentir à vontade. O mesmo com Shira, toda sua elegância e timidez, quando quebradas, expunham uma espécie de familiaridade que fazia qualquer um se sentir em casa.

Eu não sabia elaborar isso na época, mas desde então eu queria proteger essas características deles dos males do mundo. Queria que fossem livres para expressarem-nas como quisessem.

— Vamos nos provocar para sempre, sempre mesmo? — Shira indagou, se aproximando um passo a mais, e eu a abracei de lado, ficando espremido entre os dois.

— Mas é claro. — Ascian sorriu e nossa amiga notou a mudança em seu tom, pois sorriu também.

— Ficaremos para sempre juntos! — exclamei. Claro, eu era a criança das exclamações.

— Promete? — Shira insistiu e, junto a sua pergunta, senti o olhar de Ascian sobre mim.

Voltando a rir, puxei os dois para um abraço mais apertado, o coração se enchendo daquilo que eu não sabia descrever ainda.

— Prometo.

Se eu soubesse quantas nuvens passariam no céu desde aquele dia, marcando mudanças que só o tempo e o céu entendem, ou o quanto de água correria pelos rios sem nunca cruzar pelo mesmo ponto duas vezes.

Se eu entendesse que, assim como promessas, os segredos também tendem a mudar à medida que seus portadores mudam.

Se eu compreendesse toda a diferença que estaria entre o eu do passado que se comprometeu àquilo e o eu que enfrentaria seus desdobramentos no futuro, devo admitir...

...eu ainda teria dito a mesma coisa. 

Renovação de um Para SempreOnde histórias criam vida. Descubra agora