02. Percepção

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Na noite em que fui escolhido, mal consegui dormir. Repassava o que deveria fazer e como poderia ser auxílio para meus amigos. As instruções de minha avó foram diretas, mas não menos simples: cada grupo responsável por um ponto cardeal deveria viajar pelas vilas principais, pelos templos que mais recebiam devotos e fortalecer a união com eles. Faríamos isso também com as designações individuais baseadas em nossas habilidades.

Ascian, como um guerreiro e futuro deus das tempestades, usaria da chuva para ajudar em plantações, e da parte subjetiva de seu dom para auxiliar pessoas com suas lutas físicas e mentais, além de auxiliar templos em estratégias de organização. Shira, como sacerdotisa da água, direcionaria sua atenção para a cura de enfermos, alívio das dores da alma e leituras para o futuro, já que a água também permitia acesso à passagem do tempo.

E eu, como contador de histórias e ouvinte delas, sairia por aí contando feitos de nosso panteão em cada vila, ouviria as preces e os maiores desejos das pessoas que estivessem ao nosso alcance para solucionar.

Nossos afazeres começaram no dia seguinte à reunião no templo de Vespen. Trabalhávamos em dupla, trio, sozinhos. Tudo conforme o planejamento para os preparativos do festival serem feitos em três meses até sua data, para a energia crescer aos poucos, e que o máximo de pessoas possível se sentisse acolhida pelos deuses.

Quando percebi, um mês na companhia de Ascian e Shira já havia se passado. Estava sendo extremamente divertido, em toda interação com eles minhas bochechas doíam de tanto sorrir.

— Psst, Eldurian — Shira sussurrou e eu ergui o olhar para ela, seu cabelo azul oculto por uma ilusão. Estávamos nos preparando para mais um dia de tarefas, indo a uma nova vila em que eu contaria histórias e os outros dois visitariam enfermos. Era bem cedo, Ascian se espreguiçava em um canto e eu coçava meus olhos. — Veja só.

A sacerdotisa sorriu, puxando a água de seu cantil com um movimento de mão e o jogando no rosto de Ascian, que abriu a boca em um perfeito "o" indignado. Eu comecei a rir, e Shira gargalhava por ter conseguido executar seu plano.

Ascian se virou para nós estreitando os olhos. Ao movimentar a perna, ele tomou impulso e, com um grito de guerreiro, investiu em nossa direção e ergueu Shira sobre os ombros. Ela começou a se debater em meio às risadas, e eu tive de me apoiar nos joelhos para conseguir respirar.

Era assim que estávamos encarando um dia após o outro, como se não estivéssemos com a responsabilidade de toda uma região nos ombros. Porque era fácil ao lado deles. Sempre foi. Pelo visto, nossa promessa realmente era verdadeira.

Meu coração estava mais leve, se é que era possível, e ajeitei minha bolsa trespassada.

— Espero que consigam se levar a sério na visita à enfermaria da cidade.

Shira foi colocada no chão e ajeitou sua túnica e o cinto com ervas medicinais e cruzou os braços.

— Eu estou levando tudo isso muito a sério, Erín. — lá estava meu apelido de infância ressuscitado.

— Claro. — Ascian correu os dedos pelo cabelo ainda molhado, seu olho agora azul graças a uma ilusão semelhante às de Shira — Nunca vi tanta austeridade e compromisso em uma pessoa só.

Em resposta, ele levou uma cotovelada na costela. Estalando a língua e com uma delicadeza proposital comparada a seu modo geralmente brusco, Ascian segurou o pulso de Shira e a puxou.

— Então, vamos provar quem está mais sério quanto a isso. Até mais, Dan.

— O meu apelido é melhor.

— Você que acha, girino. — Ascian a puxou com mais afinco e os dois acenaram para mim — Boa história!

Meu riso voltou e eu acenei. Dei meia volta ainda balançando a cabeça para a petulância trocada pelos dois e comecei a caminhar até a praça da cidade. Um dia antes, havíamos anunciado que haveria um contador de histórias passando por ali, tanto de manhã quanto à tarde.

Renovação de um Para SempreOnde histórias criam vida. Descubra agora