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Era lua cheia e a loba estava mais agitada que nunca, a faixa em seu peito e costela não a impedia de tentar fugir, mesmo não podendo correr e com Camila em sua cola, como uma sombra feliz e aflita, era preocupante demais não conseguir fazê-la de boba e poder de esconder até o amanhecer, sua carne tremia em anseio e a humana apenas lhe dava mais e mais remédios pensando que fosse algo de extrema necessidade.

- Qual o problema, saco de pulgas? - choramingou, implorando para as luzes darem poder a ela, para que pudessem se entender. Desejando que pudessem conversar, que pudesse a fazer melhorar.

Normalmente desejos não devem ser feitos, pois alguns não são realizados e, os que são, acabam sendo de forma distorcida e cruel, diferente de tudo que realmente queria e pediu. Talvez pedir para as luzes flutuantes a compreensão fosse virar um pesadelo ao anoitecer, o que Camila não demorou para descobrir assim que o sol se escondeu.

Camila estava terminando o banho quando escutou pratos caindo e alguns estrondos, atrás de resmungos, em um piscar de olhos, se enrolou na toalha e saiu às pressas do banho, com medo de algo ter acontecido com a loba que choramingou o dia inteiro.

- Saco de pulgas? - chamou, vendo o ninho vazio e sentindo seu coração palpitar em pavor. - Onde você está? - Camila andou até a cama, procurando de baixo dela e, quando se levantou e se virou para procurar pela cozinha, soltou um grito assustador, fazendo a garota em sua frente cobrir os ouvidos e fazer uma careta.  - Que porra? - gritou, cobrindo os olhos. - por que está pelada? - indagou, se virando para procurar algum objeto para jogar na garota nua em sua frente.

- Esse é o menor dos problemas! - a voz rouca da garota fez Camila se arrepiar e quase a olhar novamente, se castigando mentalmente por isso. - Meu nome é Lauren, não saco de pulgas! - bufou, cruzando os braços e revirando os olhos. Não tinha um nome melhor para uma loba?

- Saco... Onde está minha loba? - para sua infelicidade, Camila precisou se virar, sentindo as bochechas coraram. - O que você fez com ele? Aliás, por que ainda está aqui? - Camila andou até a porta, abrindo-a e tentando manter sua postura enquanto encarava Lauren. Não desça os olhos, não desça os olhos, não desça os olhos.

- E lá vamos nós de novo. - mais uma vez bufou, negando com a cabeça e apontando para o próprio corpo, para a faixa enrolada em seu tronco e passando por cima de um dos ombros, em uma amarração desajeitada. - Isto não te lembra nada? Nadinha? - Camila negou, estreitando os olhos. Sua cabeça parecia que iria explodir a qualquer momento, era muita informação. - Digamos que as luzes me odeiam muito, muito mesmo e resolveram me punir. -

- isso... Isso não é possível. - sussurrou, andando até a cama. Suas pernas tremiam tanto e mal lembrava como respirar. Sua mente estava oscilando entre o real e o falso, a linha tênue entre fantasia e realidade estava quase se esvaindo, quase se rompendo. Sua garganta fez um nó.

- Luzes azuis, flutuantes e que fazem um barulho irritante também não é. - ironizou, andando alguns passar até Camila. Não estava acostumada a andar como humana então alguns passos eram um desafio. Camila estava tão assustada e confusa que a deixou se sentindo mal, anos como loba eram normal para Lauren, a maldição era normal, a transformação era normal para ela, apenas para ela. Não para Camila ou qualquer outro humano. - O que acha de nos vestirmos, comermos algo e conversamos um pouco, uh? Vou tentar te explicar tudo. - sua voz suavizou, Camila já não estava mais encolhida.

A curiosidade humana, a determinação para certas coisas, é incrível, insaciável. Mesmo confusa, Camila transbordava interesse para saber tudo sobre a história de Lauren, sobre como aquele belo lobo negro se transformou em uma humana maravilhosa e com aqueles olhos verdes mortíferos tão reconfortantes para si. Camila já estava totalmente apegava com a loba, com sua companhia, sua presença e agora saber que há uma maldição em torno dela deixou-a ainda mais intrigada e a querendo cada vez mais perto, para protege-la, cuida-la e, se pudesse, quebrar essa maldição.

Camila entregou algumas roupas que ficavam gigantes em seu corpo para Lauren, já que a morena era maior que ela e por alguns segundos quase deixou escapar seu fascínio, tanto pela sua forma humana, seus olhos, seus longos e escuros cabelos, quanto pela da loba.

Lauren não perdeu os olhares de Camila e, muito menos, a indignação ao se vestir em sua frente, quase a fazendo rir principalmente quando a garota correu para o banheiro se vestir.

- Você sabe que já te vi nua milhões de vezes, né? - sorriu vendo o olhar furioso e as bochechas rosadas de Camila antes da garota jogar um enfeite de plástico em seu corpo.

- Você nunca mais entra no banheiro comigo. - afirmou, marchando até a cozinha. A vergonha queimava até sua carne.

- Sabe, estou com desejo de café. - pediu, se sentando na banqueta e apoiando os braços na mesa. Seus olhos de predador eram os mesmos e o costume de não tira-los de Camila ainda permaneciam.

Camila fez o que a garota pediu, pegando algumas bolachas doces para acompanhar antes de se sentando na banqueta, o mais longe que conseguia de Lauren após servi-la.

- E então? O que mais quer para começar a me contar tudo? - indagou, vendo Lauren bebericar o café e fazer uma cara engraçada de satisfação.

- a alguns anos, não me pergunte quando porque eu realmente não faço a mínima ideia nem de que mês estamos, mas parece séculos presa nesta coisa toda, eu morava em uma vila, em uma parte distante dela, com meu pai e irmãos. - começou, se servindo mais do café após tomar todo ele de uma só vez. Alguém provavelmente não iria dormir muito bem naquela noite. - a gente não tinha muito, nossa cabana vivia em um estado horrível toda vez que chovia e eu lembro de todas as vezes acordar no meio da noite com goteiras ou meu irmão chorando assustado por conta dos trovões. - deu de ombros, a voz ficando embargada a medida que as lembranças surgiam em sua mente. - eu não faço ideia de onde eles estão agora... - suspirou, tomando mais do seu café. - eu era uma das mais velhas e você sabe, os mais velhos precisam sair e garantir mantimento para os mais novos, sempre saíamos em grupo. Um dia, um maldito dia, eu me afastei pois meus irmãos estavam me irritando tanto... Eu fiquei furiosa e sai de perto deles, eu fugi deles. Então eu encontrei uma besta... - mais café. O silêncio tomou conta da pequena cabana por algum tempo até Lauren conseguir se recompor, suas mãos tremiam em volta da xícara. - era um lobo tão, tão grande. Lembro dos dentes dele a mostra para mim, eu tentei me esconder porém ele já tinha sentindo meu cheiro, já tinha me ouvido. Como uma caçadora nata, eu andava sempre armada e não pensei duas vezes em atirar várias flechas nele. Não foi uma ou duas, Camila. Foi várias. Tantas até eu não ter mais, até o pelo cinzento estar com tanto sangue que mal dava para saber onde estava seus olhos. - seu estômago se revirou e ela precisou empurrar a xícara, o cheiro do café começou a lhe fazer mal ao lembrar da cena. - era quase noite quando eu fiz essa atrocidade e as luzes chegaram a tempo de me encontrar na floresta, próxima demais do lobo. Eu não deveria ter feito tanto e eu tinha medo, muito medo. Mas as luzes não se importam, eles não protegem a nós, e sim a eles. -

- Quando... Quando te encontrei, estava rodeada deles. - Camila comentou ao perceber que Lauren não iria mais prosseguir. Novamente, a garota encolheu os ombros e seu olhar ficou vago.

- foi a única noite que cheguei perto o suficiente deles e foi a única noite que consegui segui-los. Eu corri atrás deles até aqui. - respondeu. - todas as luas cheias eu me transformo em humana novamente, mas somente a noite, por pouco tempo. Por muito pouco tempo. - suspirou, olhando a noite. Gostaria que fosse eterna. - não sei como quebrar a maldição, não sei como continuar com isso e eu já andei tanto, procurei tanto. -

Lauren, sob as luzes da cabana e da noite, parecia extremamente cansada, exausta. Camila queria a convidar para descansar mas, pela melancolia de ter apenas uma noite como humana, Camila sabia que ela não dormiria.

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