Capítulo 47

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Faço o movimento que Nyx me ensinou repetidamente.
Meus pensamentos se perdem na minha cabeça.
Sou eu quem lhe deve gratidão.
Por quê? Eu não fiz nada para ele me agradecer. Não sei se fico feliz ou se fico em dúvida. Prefiro escolher a primeira opção.
O suor escorre pelas minhas costas e faço uma pausa para descansar. Vejo que do outro lado do campo de treino há uma torneira saindo de um poço. Ao lado há canecas para beber água. Ando até lá e bebo a água.
É refrescante, porém não suficiente para suprir minha necessidade. Preciso caçar. Meus instintos estão a flor da pele. Meus dentes estão mais pontudos, minha pele mais sensível e sinto sede. Muita sede.
Ignoro a sensação e volto para o ringue.
Fico de frente para o boneco. Meu coração bate forte em meu peito sem nem mesmo eu fazer um movimento. Me sinto doente.
Eu preciso caçar.
Não vou conseguir me controlar por muito tempo.
Cravo meus dentes em meu pulso e bebo meu próprio sangue para me acalmar. Mas a ferida não cicatriza e começo a ficar irritada.
Vejo o boneco à minha frente e o ataco sem pensar.
Crack.
Eu o parto ao meio.
Pelas estrelas, percebo que já são quase cinco da manhã. Olho para Velaris e a cidade ainda dorme.
Não consigo aguentar.
Largo a espada e saio correndo para a floresta. Livro corre ao meu lado. Estou quase a alcançando quando o sinto atrás de mim.
Merda.
-O que você está fazendo?
-Tenho que caçar.
-Júlya querida, já conversamos sobre isso.
-Eu preciso caçar!-Aumento meu tom de voz inconscientemente-Você sabe disso. Me deixe em paz.
Caminho ao invés de correr. Nyx me segue.
-Irei junto.
-Não, você não vai-Eu paro de andar, viro na sua direção e cruzo os braços.
Quem é ele para decidir se vai ou não?
Ele suspira.
-Júlya, nunca irei impedir você de fazer qualquer coisa. Mas você tem que entender que a sua saúde é a sua prioridade. Então, estou aqui para lembrá-la que você está com suas asas expostas e mal consegue mexe-las sem desmaiar. Prefere ir sozinha para a floresta onde tudo pode acontecer ou prefere que eu vá junto e finja que não existo, apenas se você correr perigo?
Que idiota irritante. Estou com raiva porque sei que ele está certo.
-Se você espantar qualquer animal ao meu alcance, a próxima presa será você.
Ele abre a boca para responder.
-Cale a boca-Interrompo-Não dê um pio quando você pisar nessa floresta.
Ele acena com um leve sorriso no canto da boca, sua maldita covinha mal aparece. Logo depois, ele some.
                            ⭑       ☪       ⭒
Entro na floresta sorrateiramente. Sinto Nyx me seguindo pelas sombras e a pantera andando atrás de mim sem fazer nenhum som.
"No centro da floresta há mais animais...e monstros se você for sortuda".
Paraliso.
"Nyx?".
"Fale, Júlia querida".
"Saia da minha mente. Agora".
"Não é a minha culpa se você deixa seus escudos abert..."
Ergo meus escudos mentais rapidamente.  Sinto Nyx raspar suas garras carinhosamente pelos meus escutos e eu os abaixo só por agora.
"Nosso acordo permite que nos comuniquemos desta forma. Não é como se eu estivesse invadindo a sua mente. É só uma ligação que temos".
"Entendi, enxerido".
Nyx gargalha, mas eu paro de escutar assim que eu ergo o escudo.
Não acredito que os abaixei. Eu sempre faço isso quando estou com ele.
Paro de me perder em pensamentos assim que escuto um barulho vindo perto de um arbusto. Subo na primeira árvore que vejo em minha frente. Livro tenta subir também e não consegue devido ao seu tamanho.
Um cervo surge do arbusto. Espero o momento certo para atacá-lo. Livro me observa atento. Óbvio, o filhote ainda não sabe caçar. Parece que terei de ensiná-lo.
"Cuide do Livro".
Digo a Nyx antes de atacar a presa.
O cervo é rápido, admito, mas eu sou mais. Ataco seu pescoço cravando meus dentes sem pensar duas vezes.
Crack.
O animal morre.
Sento nos meus calcanhares e apoio as duas mãos ao lado do pescoço do cervo. Uma em cada lado.
Estou faminta. Tenho que fazer pausas para respirar enquanto eu sugo seu sangue.
Eu sinto a presença de Nyx, porém é estranho me sentir observada enquanto como. Não sei se é desconfortável ou excitante. Acho que os dois. Livro se aproxima aos poucos e se junta a mim na refeição.
Minha respiração está ofegante quando termino, bebi o sangue muito rápido.
Não me arrependo, estava delicioso.
Tenho que me sentar para tirar a tensão do corpo. Percebo minhas mãos cheias de sangue e as limpo lambendo junto a mordida que fiz mais cedo em meu pulso, agora cicatrizada.
Livro termina de comer e eu levanto indicando com a cabeça para ele me seguir.
Escuto um barulho de um córrego próximo e nos guio até ele. Ali eu limpo meu rosto, bebo água e molho a pantera nas partes manchadas de sangue.
-Fique sempre limpo, Livro, assim você terá cheiro e ao invés de ser o predador, virará a presa. Além de não me sujar, é claro.
Ele mia em resposta. Espero que tenha entendido.
-Atrapalhei?
Nyx aparece ao meu lado estendendo a mão para eu me levantar. Pego sua mão e quando ele me puxa, tropeço sem querer. Nyx consegue me segurar antes de nós dois cairmos no córrego.
-Felizmente, não.
-Isso foi de propósito?-Ele pergunta.
-Talvez-Sorrio.
Ele sorri de volta.
-Pronta para voltar?-Balanço a cabeça-Então, vamos lá.
Fumaça negra nos envolve e por um instante acho que estou no espaço, literalmente. É como se Nyx tivesse jogado uma cortina sobre nós. E nessa cortina há várias estrelas. Não, milhares delas. É tudo tão mágico.
-Onde estamos?
Ele põe a mão na minha cintura me puxando para mais perto e sussurra em meu ouvido:
-Isso se chama Atravessar. Basta só eu imaginar onde quero ir, que vou. Incluindo distâncias curtas e longas. Mas, entre o tempo em que ficamos aqui para chegar ao lugar, e o tempo de chegada, permanecemos escondidos sob o véu da escuridão.
-Tem como nos perdemos?
-Sempre há uma maneira de nos perdemos. Basta você me soltar.
Passo meus braços pela sua cintura. Consigo sentir seus músculos ficarem tensos, mas eles logo relaxam.
-Júlya querida, você acha mesmo que eu irei soltá-la? Precisará fazer um grande esforço para me tirar do seu lado-Nyx ri.
-Parece que terei que fazer um esforço maior então.
O chão, na verdade, o espaço em que estamos tremeu e Nyx me puxa para mais perto.
-Ops-Diz ele, mas eu tenho certeza de que foi de propósito-Se continuar me distraindo posso acabar soltando você.
Fecho a minha cara, mas não protesto.
Parecia que nunca iríamos chegar, quando subitamente pisco e apareço no meu quarto com Livro. E Nyx, é claro.
-Vai continuar me segurando até quando?-Pergunto a Nyx que ainda mantêm nossos corpos colados.
-Até que essa posição é confortável
Esse cretino.
Não dei a ele tempo de piscar quando pego seus braços, prendendo atrás de suas costas e o empurrando até minha cama. Sento em cima dele e aproximo minha boca até sua orelha sussurrando:
-Não parece tão difícil assim prender um feérico, digo, um Graão-Senhor-Solto uma risadinha-Você tem certeza de que é tão difícil assim?
Foi a vez dele.
Nyx gira seu corpo e pisco uma, uma vez antes de encontrá-lo em cima das minhas costas.
Ele diz em meu ouvido:
-O que você disse mesmo? Sobre ser fácil prender um feérico, digo, um Graão-Senhor?
Eu até responderia Nyx.
Se não estivesse sentindo pânico.
Um pânico que crescera nas minhas entranhas a partir do momento em que Nyx me prendeu embaixo dele.
-Me solte.
-Oi? O que foi que você disse, princesa?
Meu estômago se revira.
-Me. Solte. Agora.
Nyx me prende com mais força e minha bochecha é esmagada no colchão.
-E por que eu deveria fazer isso?
Me sinto sufocada.
Não consigo respirar.
Meu peito sobe e desce rápido demais e Nyx percebe.
-Júlya?-Ele pergunta e pela voz eu até diria que ele está preocupado.
-Me solte!-Grito e meus ossos tremem.
Nyx me solta e levanto com um pulo, me levando até o outro lado do quarto. Paro ao lado da escrivaninha, quase à janela. Tremendo.
Não consigo parar de tremer.
Merda.
Não acredito que Nyx está me vendo nesse estado deplorável.
-Eu a machuquei?-Uma voz pergunta na outra extremidade do quarto.
Ergo meus olhos até a voz, mas tudo o que vejo é ele.
É idêntico a ele. Meu pai está parado bem na minha frente e não consigo me mover.
Pisco e quem aparece no lugar dele é Nyx com o rosto pálido e os olhos preocupados.
-Júlya-Ele chama.
Balanço a cabeça.
-Não é possível-Digo a mim mesma.
-O que não é possível, querida?-Ele pergunta cauteloso.
-Eu vi meu pai-Sussurro-Em seu lugar. Quando eu tinha a idade de Akira e desobedecia ele-Meus olhos ardem, mas não há lágrimas para cair-Ele me prendia com seu peso...e me acorrentava para que eu não o desobedecesse novamente. As vezes eu passava dias acorrentada, com fome e frio-Passo a mão pelos pulsos e vejo as cicatrizes deixadas pelos grilhões. Cordas invisiveis ainda me prendem-Até que um dia ele simplesmente deixou me me amarrar e...
Começou a me açoitar.
Não pronuncio as últimas palavras. Eu as deixo se perderem na imensidão da minha alma.
-Você ainda sente o peso dos grilhões?-Nyx pergunta.
-Sim.
Quando eu respondo, Nyx saí do meu quarto fechando a porta sem fazer nenhum barulho.
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Cravo a espada de madeira no boneco, ultrapasso tanto sua armadura que ela se fixa ao chão.
Dou um passo para trás e observo meu trabalho orgulhosa. Perfeito.
Estou prestes a chamar Nyx para me gabar, mas lembro que não quero ver seu rosto no momento.
Não sei o que ele anda fazendo, depois que saiu do quarto não o vi mais.
Me arrependo profundamente de ter compartilhado aquela memória com ele. Não quero que ele sinta pena de mim. Não sou digna. E eu não faço a mínima ideia de como encará-lo agora. Ele pareceu tão desesperado na hora, como se ele realmente se importasse comigo.
É impossível. Nyx é Nyx, calculista, frio, sanguinário e impassível são as palavras que devinem ele desde o dia em que cheguei...Mas, o Nyx que eu vi hoje é um macho completamente diferente.
Não quero pensar nele agora. É demais.
Eu até ficaria na cama enroscada nos cobertores se eu não sentisse nojo dela. Ou daquele lugar que me sufocou. Então, decidi sair para dar uma caminhada até que chego no campo de treinamento.
Pelo Sol, já são oito horas da manhã. Akira deve estar acordada, ou acordando.
Caminho de volta ao meu quarto para tomar um banho. Apesar de ser o último lugar onde eu queria estar, a vontade de ficar limpa venceu.
Após eu me lavar, vou até o quarto de Akira para observá-la dormindo.
Bem, parece que eu peguei a mania de stalker de Nyx.
Percebo que penso nele novamente.
Pela Mãe, tire ele dos meus pensamentos. Nyx parece uma droga, ele é inteiramente viciante.
Entro em seu quarto querendo pegar uma cadeira para botar ao lado de sua cama. Mas ela já está ali. Ponho a mão na madeira e percebo que ela está morna. Alguém estava observando Akira.
Será que Azriel? Morrigan? Elain? (Tenho certeza de que foi aquele alecrim dourado).
Muitas opções. Em todas elas eu não me importo, me sinto mais segura se alguém estiver ao seu lado. Desde que seja o Círculo Íntimo, eles podem ficar com ela.
Akira se mexe na cama acordando. Ela abre os olhos lentamente e pisca assim que me vê ao seu lado.
O sorriso toma conta do seu rosto.
-Bom dia, mana.
-Oi, Kira.
Ela se senta na cama com os olhos arregalados.
-S-suas asas...branca e marrom. Está tudo bem? Você nunca tinha me mostrado elas antes.
-Estou bem, sim. Nyx chamou uma curandeira para cuidá-las. Talvez eu volte a voar.
Ela fica em pé na cama e começa a pular.
-Isso é demais! Eu quero que você me leve para passear quando voltar a voar. Promete?
-Prometo-Não minto, nem digo a verdade. Quero que ela acredite que tenho total chance de voltar a voar.
-Pela Mãe-Kira para de pular e fica de boca aberta-Quando que você adotou um gatinho? Eu só fiquei fora por um dia-Ela faz o um com o dedo-Um dia e tudo isso de novidade? Não quero mais dormir fora.
Rio de suas palavras.
-Como foi com Elain?
-Maravilhoso!-Ela gesticula com os braços-Eu comi um monte de doces e aprendi a fazê-los.
-É mesmo? Só porcaria, Akira?
Ela abre um sorriso travesso.
-Não. Elain me levou para comer fora, só que eu não queria comer só com ela e chamei Az para comer com a gente. Estava gostoso.
Deixo escapar uma risada.
-Akira sua espertinha. Eu conheço bem você-Sento no meio de sua cama e bato ao meu lado para ela se sentar também-O que tá pegando?
Ela ri com a mão na boca.
-Então...você não acha que eles combinam?
-Quem? Azriel e Elain? Nem pensar. Você vai se meter em uma encrenca daqui a pouco e eu só vou ficar assistindo.
-Não tem como negar, eles tem química.
-Pela Mãe, Kira. Onde você aprendeu essas coisas?
Minha irmã dá de ombros.
-Coisas da vida.
Coisas da vida?
-E você? Não está a fim de ninguém?-Pergunto brincando
-Júlya eu tenho dez anos.
-Ah. Para isso você tem dez anos, agora para ser fofoqueira não-Balanço a cabeça-Vai entender.
-Ei! Eu não estava sendo fofoqueira, só informada. Agora, me diz você. Interessada em alguém?
Meu sorriso morre na mesma hora.
-Interessada não é a palavra...só curiosa.
-O quê?-Kira abraça um travesseiro-Você é mesmo a minha irmã? Cadê aquela feérica me dizendo para eu nunca me apaixonar por um macho? Tá tudo bem com você?
Reviro os olhos.
-Não escutou o que eu disse? Eu estou curiosa. Não misture as coisas.
Ela me mostra a língua.
-Me conta tudo.
Estreito os olhos.
-Segredo?-Estendo a mão com o minguinho levantado.
-Segredo-Akira engancha seu dedo ao meu. Sempre fazemos isso quando guardamos segredos uma da outra.
-É o babaca.
-Ah! Eu sabia!-Eu a fulmino com o olhar-Tá, tá. Vou ficar de boca fechada-Ela fecha a boca imitando um zíper.
-Como você sabe que é Nyx se eu só disse babaca?
-Você não esconde que o odeia.
-Faz sentido.
Akira tenta esconder um sorriso e falha.
-O que foi?
-Você percebeu que se ficar com Nyx, será uma princessa? E eu, a irmã de uma princesa?
-Não. Comece.
-Por favor, fiquem juntos logo para eu ser a irmã de uma princesa. Ou eu conto para seus sogros que vocês estão planejando se casar.
Que peste.
-Akira, cale a boca.
-Eu vou contar para a Feyre e o Rhysinho-Ela grita.
Boto minha mão na sua boca mas ela me lambe.
-Eca!
-Por que eca? Não quer ter Feyre e Rhysand de sogros? Tudo bem, há Cassian e Azriel também
-Pelos Deuses. Cale a boca Akira.
-Eu gosto mais do Az, então eu aprovo seu casamento com ele.
Essa menina não vai calar a boca.
-Cassian já tem parceira.
-É mesmo? Ela é bonita? Estou ansiosa para conhecê-los, Mor sempre fala deles quando estamos juntas.
-Ela é bonita sim. Um dia você irá conhecê-los.
-Quando?
-Não sei. Vou conversar com Nyx sobre isso.
-Hmm. Espero que seu Nyx lhe responda logo.
-Ele não é meu, enxerida.
Que a Mãe me dê forças para aguentar essa criança.

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