0.22 ☽ ​você.

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— Você parece incomodado.

Felix estava, na verdade, desleixadamente deitado no pequeno sofá de cor terrosa para combinar com todo o resto da sala esteticamente organizada da Doutora Kim.

— E o que te fez chegar nessa conclusão? — indagou, o tom desafiante quase imperceptível pela ironia de estar usando uma das clássicas perguntas da mulher contra ela mesma.

Ela recostou-se em sua poltrona, cruzando as pernas.

— Talvez você ter aparecido sem um horário marcado quando normalmente não vem nem nos seus horários.

— Touché — Felix assobiou por baixo da respiração, desviando o olhar dos olhos atentos da Doutora que, pacientemente, esperava por uma catarse.

Para ser honesto consigo mesmo, Felix não tinha ideia do porquê havia ido até ali, até encontrar-se ali. Talvez fosse uma memória muscular, seu corpo sabendo onde levá-lo pois sabia que aquela era a mulher responsável por ajudá-lo a organizar seus pensamentos mais perturbadoramente bagunçados há tantos anos.

Talvez, fosse o simples fato de por alguma razão o sofá da mulher ser infinitamente mais confortável do que o seu próprio - ponderou apenas tirar uma soneca ali, sabia que a Doutora não o impediria, não seria a primeira vez.

Exceto que, ao fechar os olhos, podia ver com uma clareza assustadora olhos castanhos que transbordavam um calor gentil e que fazia algo desconhecido contorcer-se em seu peito.

— Você acha que querer é tão diferente assim de precisar?

Doutora Kim piscou e suavemente retumbou um 'hum' pensativo.

— Acho que são como dois lados de uma mesma moeda, em muitos momentos podem parecer e sentir como a mesma coisa, mas em sua essência são totalmente diferentes — disse, calmamente e, apenas porque o olhar do garoto franziu-se em profunda confusão, permitiu-se exemplificar melhor: — Penso no precisar como uma necessidade primária: comida, água, sono e até mesmo sexo são necessidades fisiológicas, precisamos delas para viver, mas isso não quer dizer que não podemos querer elas. Eu preciso comer para sobreviver, mas posso querer comer apenas porque é bom. Meu corpo pode precisar de sexo, mas eu posso querer apenas porque me faz me sentir bem estar com outra pessoa. Eu preciso de dinheiro para suprir todas minhas necessidades fisiológicas, mas posso querer mais apenas por ganância ou conforto. Uma moeda, mas dois lados diferentes.

— Parece uma escolha.

— O sentimento nem tanto, a escolha está no que você decide fazer com ele.

Lembrou-se, com a clareza de quem jamais teria sido capaz de esquecer, do Detetive sentado à sua frente após atender cuidadosamente pela segunda vez sua ferida, tentando fazê-lo entender com o mesmo intento de um padre que tenta evangelizar.

"Felix, é realmente isso que você quer?"

Bem, Felix já estava além da salvação há muito tempo.

— Parece estúpido e uma perda de tempo.

O desprezo em sua voz não surpreendeu a Doutora, na verdade, parecia ter esperado por isto - o que não diminuiu seu desapontamento.

— Você sabe, quando eu te conheci... — ela disse cuidadosamente, observando o rosto sardento e frígido do garoto à procura de quaisquer reação. — Você era só um garotinho que não falava, não comia, não bebia, não se movia. Cheguei a acreditar que se respirar não fosse uma função involuntária, você também não o faria e eu pensei "como é possível que alguém tenha despido um ser humano tão pequeno de todo instinto e vontade de viver?"

Solivagant • chanlixOnde histórias criam vida. Descubra agora