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Dizer que é surreal já estar na Escócia apenas uma semana depois de arrumar as malas com Michel não chega nem perto de descrever a estranheza que sinto enquanto me inclino, no banco detrás do Land Rover, e observo a Escócia – o lugar pelo qual fiquei obcecada durante o último ano – se desdobrar à minha frente.

Desde que voei de Houston a Londres, já estive num trem para Edimburgo e, depois disso, para Inverness. Lá, me encontrei com o motorista do Land Rover, um cara barbudo que se apresentou como “sr. McGregor, o jardineiro”. Ele parece ter em torno de cem anos de idade, mas estou tão cansada que ele poderia dirigir como se estivesse na versão escocesa de Velozes e Furiosos e eu não me importaria. Contanto que eu chegue em Gregorstoun, tudo bem.

Há outros três adolescentes comigo no carro, duas garotas e um garoto, e todos os três parecem mais novos do que eu. Eles estão próximos uns dos outros, conversando em voz baixa. Eu os vi no trem de Edimburgo, reunidos.

Aquela foi uma experiência esquisita, andar de trem, observar o cenário mudar das casas suburbanas para campos e depois para morros pedregosos ao nos aproximarmos do norte. Eu estava tão insegura do que fazer que fiquei paralisada no meu assento a viagem inteira, sem nem mesmo ir ao banheiro.

Todos os três ficam me olhando e, finalmente, quando o Land Rover passa por um morro, eu viro para eles com um sorriso radiante.

— Então, qual casa vocês acham que o chapéu seletor vai escolher pra vocês? — pergunto, e então levanto a mão, cruzando os dedos. — Corvinal, tomaaara.

Os três me olham indiferentes.

O sr. McGregor dá uma risada. Ou talvez esteja se engasgando, é difícil dizer.

— Você é americana — uma das garotas diz.

Ela é miúda, com cabelos loiros acinzentados e enormes olhos azuis.

Dá para ver a cabeça de um cavalo de plástico saindo de um dos bolsos de sua bolsa de couro.

— Sou — digo. — Meu nome é Gio.

A garota me encara sem reação antes de se apresentar:

— Elisabeth. Lissie, na verdade. Essa é a Em — ela aponta para a garota de cabelos escuros ao seu lado — e esse é o Olly.

— Elisabeth, Em, Olly — repito, fazendo um cumprimento com a cabeça para cada um deles.

Todos sorriem educadamente e, tá bom, beleza, eles devem ter uns doze anos, mas talvez esse seja um bom sinal do tipo de pessoa que vou conhecer em Gregorstoun. Talvez não sejam todos Gente Rica Assustadora, mas apenas… Jovens Esquisitos.
Jovens Esquisitos Ricos, mas jovens ainda assim.

De qualquer maneira, a estrada está se assentando agora, e o colégio começa a se erguer no horizonte, igualzinho ao site, só que… real.

Na minha frente.

As fotos não foram capazes de capturar tudo. As pedras de tons perolados contra o verde, quatro andares imponentes, um longo caminho de cascalho na entrada e as janelas reluzindo sob o sol.

— Ah, uau — eu me empolgo e o sr. McGregor olha para mim com um brilho nos olhos, se percebo bem.

— Aye — ele concorda. — É uma visão e tanto.

Então ele suspira, franzindo a testa.

— Já foi o lar da minha família, sabe, mas agora eu só trabalho aqui, transportando vocês.

Não sei muito bem o que responder, então apenas solto um uhum e volto a prestar atenção no colégio.

Há vários estudantes perambulando no gramado, alguns uniformizados, outros, não. Estou de jeans e camiseta, já que ainda não peguei meu uniforme.

Acomodando a mochila no colo, eu pego o e-mail que imprimi. Quarto 327, leio, meus dedos deslizando sobre o número. Meu quarto. O quarto em que vou morar pelo resto do ano.

Com outra garota.

Essa é uma das partes mais esquisitas desse experimento de estudar num colégio interno – morar com outra pessoa. Eu fui filha única até dezoito meses atrás e nunca compartilhei meu espaço com uma pessoa desconhecida dessa maneira.

Mas será um bom treino para a universidade, certo?

O sr. McGregor dirige o carro até a entrada do colégio, onde os estudantes já estão entrando, arrastando malas de rodinha imensas. Minha mala gigante está no Land Rover (comprada na promoção na TJ Maxx, muito obrigada) e, antes que eu perceba, estou em pé no enorme salão principal de Gregorstoun, segurando a mala pela alça.

É um caos, as pessoas estão saindo e entrando, e eu olho ao redor, tentando absorver tudo, uma mistura de nervosismo e jet lag fazendo com que eu me sinta mais ansiosa do que imaginei que ficaria.

Estou surpresa com a quantidade de garotos que tem por aqui. Todos os tipos de garotos. Garotos que parecem ter doze anos e garotos muito mais altos que eu caminhando para dentro do colégio. Deve ter cinco garotos para cada garota, e eu imagino quantas de nós se inscreveram para fazer parte da primeira turma feminina de Gregorstoun.

O andar térreo ainda parece ser como a casa de alguém. Muitas pinturas nas paredes, mesinhas cheias de quinquilharias e tapetes macios sob os pés.

À minha frente, uma escadaria de madeira se espirala para cima e, engolindo em seco, eu ando em direção a ela, arrastando a mala atrás de mim.

Não há elevadores – ou lifts, como eles devem chamar por aqui –, então eu de fato consigo fazer um treino cardiovascular subindo com minhas coisas até o terceiro andar.

A parte de cima é um pouco menos caótica, mas é mais escura. Tem menos janelas e, conforme avanço sobre o tapete, percebo que ele parece quase mofado.

Eca.

Mas encontro o quarto 327 com facilidade e, quando abro a porta, não há ninguém lá dentro.

Parada no umbral, observo duas camas de solteiro, uma cômoda e uma escrivaninha de cada lado da porta. Na verdade, abrindo a porta inteira, ela bate em uma das escrivaninhas e, por alguma razão, eu decido seguir em frente e tomar posse daquele lado do quarto. Isso pode fazer minha colega de quarto gostar de mim, né? Escolher o pior lado?

Puxando a mala para dentro do quarto, eu me sento na pequena cama coberta com lençóis brancos ásperos e uma manta verde de lã.

Consegui. Estou na Escócia e vou ficar até o fim do ano.

Antes que a ficha do que alcancei caia por completo, pego meu celular e ligo o FaceTime para chamar meu pai.

Ele atende quase imediatamente e sorrio aliviada ao vê-lo na sala de estar.

— Você conseguiu! — ele diz, entusiasmado, enrugando seus olhos nos cantos. Eu concordo balançando a cabeça e giro o celular para ele ver meu quarto.

— Vivendo intensamente no luxo, claro — falo, e Anna aparece na tela.

— Meu Deus, é tão… exótico — ela diz levantando uma sobrancelha e eu aceno para ela.

— Se por exótico você quer dizer um pouco assustador e pequeno, então, sim!

Ela franze a testa de leve, se aproximando do celular do meu pai.

— Gi, se isso não for… — ela começa a falar, mas então a porta do quarto se escancara, colidindo com força na minha escrivaninha.

— Não — uma voz insiste. — Isso não é o que foi combinado.

Uma garota entra no quarto seguida por um homem de terno escuro e, por apenas um segundo, minha família e meu celular são totalmente esquecidos.

Não é de bom modo ficar encarando, sei disso, mas ela é literalmente a garota mais linda que eu já vi na vida.

Ela é pouca coisa mais alta que eu e seus cabelos são de um castanho meio claro meio escuro. Tipo. Literalmente meio claro meio escuro, não tem definição. Está arrumado com uma faixa de cabelo fina para deixar o rosto livre, e esse rosto…

Eu me dou conta enquanto estou olhando para ela de que beleza é mais do que a estrutura do seu rosto, as características estranhas do DNA e normas sociais que nos fazem pensar “esse nariz é o melhor nariz”, ou “é por isso que gosto dessa boca”, ou algo assim. Essa garota claramente ganhou a loteria genética, não me entenda mal, mas não é apenas isso – é que ela parece brilhar. Sua pele é tão impecável e luminosa que quero acariciar seu rosto, como se eu fosse algum tipo de pervertida. Não sei se ela sequer sabe o significado da palavra “poro”. Será que ela segue uma daquelas intensas rotinas de cuidado com a pele com dez passos? Ela encontrou máscaras faciais mágicas feitas de pérolas?

Talvez isso seja apenas o que ser rico faz com seu rosto.

Porque não há dúvidas de que essa garota também é muito, muito rica. Suas roupas são simples – um suéter e jeans enfiados em botas de couro de cano alto –, mas elas praticamente cheiram a dinheiro. Ela tem cheiro de grana.

Sem falar que apenas gente rica pode curvar a boca da maneira que ela está fazendo agora para o cara de terno que está com ela. Será o seu pai? Ele parece um pouco jovem, e é difícil imaginar que um cara com papada e pele esburacada poderia ser parente dessa verdadeira anja que está parada na minha frente com sua bolsa Louis Vuitton na dobra do braço.

— Sua mãe… — o homem começa a dizer e ela levanta os braços.

— Liga pra ela, então.

— Perdão? — o homem pergunta, franzindo a testa grossa.

— Liga para a minha mãe — ela repete, sua voz carregando um leve sotaque escocês.

Seu queixo está levantado e eu posso sentir a tensão vibrar do corpo dela.

— Nós fomos informados… — o homem diz com um suspiro, mas ela não está cedendo.

— Liga para a minha mãe.

No celular, meu pai faz uma cara séria.

— Está tudo bem? — ele pergunta, e eu olho de volta para minha nova colega de quarto, ainda repetindo imperiosamente o mantra “Liga para a minha mãe” a cada vez que o homem tenta dizer algo.

E agora eu percebo que ele pegou o celular, imagino que para ligar para a mãe dela, e ela continua dizendo isso, de novo e de novo, como um bebê.

— Liga para a minha mãe. Liga para a minha mãe. Liga para a minha mãe.

Talvez seja o jet lag. Talvez seja a estranha sensação que tenho no estômago que se iniciou no momento em que entrei no colégio e a mudança colossal que fiz, mas finalmente bateu.

Eu me viro para olhar para ela e, antes que possa pensar melhor, ouço essas palavras saírem da minha boca:

— Ei. Veruca Salt.

Seus lábios se entreabrem e ela ergue as sobrancelhas ao me encarar.

— Perdão?

Eu nunca quis tanto puxar as palavras de volta para dentro da boca. Michel estava certo sobre eu não gostar de confrontos – é basicamente a coisa que menos gosto, atrás apenas de maionese e jazz. Mas algo sobre o modo de falar dessa garota simplesmente… me incomodou.

Então talvez essa seja eu agora? Gio Lima, Confrontadora de Pessoas.

Eu decido prosseguir.

— Você se importa em fazer menos barulho? — Chacoalho meu celular em sua direção. — As pessoas aqui estão querendo conversar, e parece que esse cara está ligando pra sua mãe, então, tipo, dá uma diminuída boa aí?

Ela continua me encarando, e o homem que está com ela agora está olhando para mim também, seu rosto corado se avermelhando ainda mais.

Que seja. Eu respiro fundo e volto a falar com meu pai.

— Olha, estou aqui, estou segura, tudo está ótimo… mais ou menos, e eu ligo pra vocês mais tarde, tá bom?

Esfregando os olhos, meu pai concorda.

— Tudo bem, Gi. Eu te amo.

— Também te amo.

Ele desliga e eu volto a mexer na mala sobre a cama. Ainda tenho uma tonelada de coisas para arrumar, e vai ser um trabalho e tanto fazer esse quarto se tornar minimamente como um lar, então eu deveria…

— Você realmente me chamou de Veruca Salt?

Eu me viro para observar minha nova colega de quarto, parada ali com os braços cruzados. O cara que estava com ela saiu para o corredor, falando ao celular, provavelmente com a mãe dela, como ela tanto pediu.

Eu levo um segundo para estudá-la agora que não estou cega por sua estrutura óssea e cabelos lustrosos. A cor de seu suéter é um verde pálido que faria qualquer pessoa parecer quase doente, mas apenas realça aquele brilho dourado em seus olhos e, sim, minha primeira impressão de que ela é a garota mais linda que já vi ainda se sustenta, mas o modo zangado com que sua boca se curva tira um pouco do brilho.

— Sim, chamei — digo a ela. — Parecia que você estava a três segundos de irromper num número musical sobre querer coisas, então pareceu apropriado.

Ela crispa os lábios, curvando-os em um sorriso.

— Fascinante — ela diz, finalmente, e então seu olhar pousa em meus jeans, nem de longe tão bom quanto o dela, e minha camiseta de mangas longas.

É a camiseta que consegui trabalhando no anuário do ano passado. Pensei que não tinha sentido em me arrumar, já que receberíamos nossos uniformes assim que chegássemos, mas, agora, ao lado dessa garota, eu me sinto um pouco… relapsa.

— Pelo jeito você é minha colega de quarto — ela diz, e eu cruzo os braços imitando sua postura.

— É o que parece.

Aquele sorriso de novo. É um sorriso digno de vilã da Disney, me lembrando que não importa o quão linda é essa garota, ela é claramente uma bruxa.

— Que encantador pra nós duas — ela diz, e então se vira, andando a passos garbosos para fora do quarto.

Ela provavelmente foi procurar o diretor para pedir uma troca ou algo assim e, francamente, eu acharia ótimo também.

Mas, ei, talvez o colégio nos mantenha tão ocupadas que mal terei tempo para vê-la.

Apenas depois que seus passos duros sumiram no fim do corredor que eu percebi que não perguntei seu nome.

Sua Alteza Real; ginessaOnde histórias criam vida. Descubra agora