Capítulo Um

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Liana Welser

Bip...bip..bip..

O som constante me fez despertar, minha boca estava seca e eu sentia minha cabeça pesada, a vista embaçada começava aos poucos focar em algumas pessoas falando, eles pareciam distantes, mas eu podia claramente ouvir pessoas conversando, o bip me deixava um pouco nervosa, olhei ao redor e a sala era branca, estava clara, meus olhos doíam. Pensei em me levantar, então mexi minhas mãos, quando a trouxe de frente para os olhos notei que estavam machucadas e em uma delas havia uma agulha, olhei para o alto e avistei uma bolsa de soro na coloração amarela.

Estou sendo medicada. – Pensei.

Queria falar, mas algo me impedia, foi então que toquei minha garganta e percebia que havia algo ali, um tubo de plástico. Comecei a me sentir nervosa, queria sair daquela cama, mas não conseguia me mexer, pelo menos não a parte de baixo do corpo. O que estava acontecendo? Minha última lembrança era de estar indo para Angra dos Reis com Gilberto, lá iriamos encontrar dois contatinhos que arrumamos. A frequência dos bips começou a aumentar e logo pude ver uma mulher de branco passar e me olhar, ela então apertava um botão que estava do lado da cama, era óbvio que eu estava em um hospital, mas o que aconteceu?

- Você precisa se acalmar querida, já vamos te explicar tudo. Não tente falar. – Ela tinha uma voz serena e uma expressão calma, mexeu em algumas coisas até que um homem alto passou pela porta, estava usando jaleco. – Ela acordou, está um pouco agitada.

- Fez a medicação? – A mulher concordou.

Pouco me lembro do tempo em que passei no hospital, na verdade só conseguia me lembrar dos últimos dois dias, acho que foi quando eles diminuíram os sedativos e finalmente tiraram o maldito tubo de plástico da minha garganta. Toda vez que eu acordava eles me davam uma informação nova, a primeira era que eu fiquei em coma por duas semanas, depois me induziram por mais duas semanas, devido as lesões graves, nas primeiras duas semanas eu precisei fazer uma traqueostomia, o que resultava naquele tubo. Eles me contaram o que aconteceu, Gilberto provavelmente dormiu no volante e perdeu a direção, sendo assim o carro saiu da estrada e capotou diversas vezes, eu acabei sendo jogada para fora do carro porque o cinto de segurança foi danificado de alguma forma. A segunda vez que acordei me deram a notícia que eu havia machucado minha coluna durante o acidente e isso resultou na perda dos movimentos das minhas pernas. Parecia um ciclo sem fim de notícias ruins e eu comecei a ter medo de acordar, o que viria depois?

No auge dos meus vinte e poucos anos, tendo milhares de coisas para fazer virar uma inválida não era uma opção, talvez aquele tenha sido o clique que me fez praticamente me desligar, eu não prestava mais atenção nas coisas vivia nas fantasias dos meus pensamentos, era como se tudo acontecesse e eu estivesse fora do meu corpo vendo.

Se mexe, faz algo. Você não morreu, ainda pode continuar vivendo. – A parte racional falou.

Mas era difícil, não era como se eu tivesse controle de como agir, de como encarar aquilo. Há pouco mais de seis meses eu estava em Mônaco num Iate curtindo uma festa com minhas amigas e agora eu estava aqui, sozinha, presa nessa maldita cadeira, com cicatrizes físicas e emocionais que levaria para o resto da vida. Por que eu? Era a pergunta que eu me fazia todos os dias de manhã, Gilberto ficou apenas com um galo na cabeça e ele era o culpado, por que eu tinha que estar dessa forma? Ele não veio me visitar, não sei se por culpa ou por medo de talvez eu dizer algo, mas sinceramente gostaria que ele pudesse ver o que fez comigo.

Foi uma fatalidade, ele não teve culpa. Você sabia que ele trabalhou dobrado naquele dia. – Novamente meu lado racional tentava amenizar a situação.

Eu não me importo, eu não sou culpada e se ele não é o culpado, então quem devo culpar? A Deus? O que eu fiz de errado? Transei antes do casamento? Nasci bissexual ou talvez só pelo fato de ter nascido mulher já mereça ser castiga? Ou talvez meu bisavô fosse um nazista? Foda-se isso, eu não tinha culpa e se essa merda toda for algo de pendência com vida passadas, eu quero que todos vão tomar bem no meio de seus devidos cus, porque eu nem lembro de nada.

Quando o helicóptero pousou, foi quando finalmente despertei. Meu pai falou com o piloto, apertou a mão dele e logo mais dois homens apareceram para me ajudar a descer. Eles eram peões da fazenda, não falaram nada, mas pelos olhares pude perceber que eles estavam com pena de mim.

- Nós sentimos muito, patroazinha.

- Eu não preciso da pena de vocês. – Falei. O que era aquilo? Eu mesma não me reconhecia, todo amargor e raiva que eu sentia, aqueles homens não eram culpados e na posição deles talvez eu sentisse pena da pobre filha do patrão que se perdeu na cidade grande e quase morreu. Aquele gramado fofo fazia ainda mais difícil minha ida até a casa, as rodas ficavam presas e aquilo estava me irritando. – Eu odeio esse lugar! Como pode não ter um simples caminho aterrado? Todo mundo tem que sujar os sapatos, essa a maldita regra dessa fazenda? – Esbravejei.

- Eu lembro que antes de ir embora você disse outra coisa. – A voz feminina que veio de trás da cadeira me chamou atenção. – Chorava e pedia para o seu pai não te mandar para o Rio de Janeiro.

- E você quem é? – A mulher parou minha cadeira de frente para a escada que dava na casa, andou até minha frente, o sol atrás dela criava uma silhueta bonita, mas aquilo me fez colocar a mão em cima dos olhos para poder ver melhor. Ela então tirou o chapéu e sorriu.

- Sou a Flor, ou Jão, como o pessoal sempre me chamava. – A pele morena bronzeada, denunciava que ela trabalhava bastante no sol, o cabelo grande e liso presos num rabo de cavalo apertado e as roupas um tanto quanto masculinas, davam um charme a mulher. – Você ficou muito bonita. – Aquela frase me deixou com raiva, como alguém podia dizer aquilo? Eu estava com um lenço para esconder a cicatriz recente da traqueostomia, estava numa cadeira de rodas e ainda estava com uma parte da cabeça raspada devido a cirurgia por causa do sangramento intracraniano.

- Você não precisa mentir. Eu posso ser uma inválida, mas não sou uma idiota! – Algumas lágrimas teimosas começaram a cair.

- O que diabos você está fazendo? – Meu pai apareceu com o tom de voz ainda mais ríspido e grosseiro que o meu. – Eu falei para você não abrir a boca para falar com ela.

- Desculpa, patrão. – Colocou o chapéu novamente.

- Eu não mandei você levar ela para casa?

- Eu não sabia se podia carregar ela...

- É claro que não pode! – Meu pai respirou fundo. – Mesmo se quisesse você não teria forças para carregar ela.

- Acho que eu aguento sim. – Flor ficou me olhando, quase como se estivesse calculando meu peso.

- Para de dizer asneiras. – Meu pai veio ao meu lado e pegou minha cadeira. –  É assim que se sobe com uma cadeira de rodas nas escadas. – Ele então mostrou a ela como fazer, quando chegou no fim da escada ela ficou parada nos olhando. – Vai cuidar dos porcos, é a única coisa que você sabe fazer bem.

- Eu sei fazer muitas coisas bem, tá. – Maria Flor respondeu.

- Garota desbocada! – Meu pai levantou a mão quase como se estivesse ameaçando dar, mas ela só se afastou enquanto ria. – Vai logo que eu estou perdendo a paciência com você.

- Sim, sinhô. Tenham uma boa tarde. – Foi tudo que falou quando saiu.

- Eu vou chamar a atenção dela de novo, eu não sei o que ela falou para te deixar tão chateada, aquela garota não tem jeito, desde que chegou sempre apronta e me deixa de cabelos em pé.

- Menina! Você chegou. – A mulher usando roupas simples e um avental saiu pela porta da casa. – Por que está chorando? O que houve? – Se abaixou na minha frente, mesmo com dificuldade e secou minhas lágrimas. Isaura, foi quem me criou depois que minha mãe morreu. Era como minha segunda mãe e eu só aceitei voltar porque ela pediu, disse que queria cuidar de mim.

- Foi a desmiolada da sua filha, falando coisa que não deve aposto. – Meu pai prontamente falou.

- O que ela fez? – Isaura fez sua expressão de brava que dava medo em qualquer um, até mesmo em mim.

- Ela... Ela disse que eu estou bonita. – Não fazia sentido aos demais porque eu estava chorando, talvez antes do acidente eu me considerasse bonita, mas agora eu era apenas uma invalida cheia de cicatrizes, como ela podia ser tão cruel e dizer algo assim?

Minha doce matuta (Romance lésbico)Onde histórias criam vida. Descubra agora