Um ano antes, voltava para casa do hospital onde trabalhava como cirurgião quando avistou um carro estacionado na beira da estrada, aparentemente com problemas. Parou ao lado e perguntou ao condutor o que tinha acontecido e também se ele precisava de alguma ajuda. Quando o homem, que estava de costas, virou-se e o encarou, Sebastian percebeu, surpreso, que o conhecia.
Hélio contou que, por causa de um engarrafamento, tinha optado por outro trajeto para chegar ao trabalho, mas, ao passar pela rodovia, o pneu havia furado e por isso tivera que estacionar. Recusou, no entanto, a oferta de ajuda, dizendo que podia dar conta do problema sozinho. Sebastian assentiu friamente e, sem dizer mais nada, subiu a janela e continuou o seu caminho.
O encontro inesperado fez com que antigos ressentimentos, que com muita dificuldade ele aprendera a conviver, ressurgissem de repente, como cicatrizes sendo reabertas. Não gostava de Hélio, pois atribuía a ele o distanciamento do seu melhor amigo. Sentiu os olhos ficarem úmidos ao lembrar de Benício. Não falava com ele há... sequer se recordava da última vez em que tinham conversado. Vê-lo, então, fazia anos. Suas lágrimas eram mais de fúria do que de frustração.
O fato de não ter sido reconhecido por Hélio também o enraivecia. Benício já os havia apresentado um ao outro no passado, também já tinham se falado em algumas ocasiões, não tinha como ele não se recordar... Lembrou que, nas poucas vezes em que haviam estado juntos, Hélio o tratara com uma indiferença quase absoluta, como se não merecesse ou fosse digno da sua atenção. Talvez - disse para si mesmo - ele não tivesse nem se dado ao trabalho de memorizar seu rosto...
Uma ideia sombria assaltou sua mente e suas mãos, postas no volante, se enrijeceram - não era a primeira vez que pensava naquilo. Deslizou a mão para dentro do porta luvas, sem tirar os olhos da estrada, e seus dedos se fecharam em torno de um objeto. Desistiu da rota que seguia e deu meia volta.
Hélio, tendo efetuado a troca do pneu, terminava de apertar os parafusos. Com a traseira da mão, enxugava o suor que deixava sua testa ensopada. Fitava, aborrecido, as roupas que agora estavam cheias da poeira da estrada e se perguntava se receberia uma bronca ao chegar no trabalho por causa do atraso - o chefe não era muito compreensivo. O foco dos seus pensamentos, no entanto, estava no homem com quem havia conversado há pouco.
Em um primeiro momento, sua feição lhe parecera familiar, mas demorou um pouco a reconhecê-lo. Só quando ele já havia partido ocorreu-lhe que era um dos amigos de Benício. Não o via há bastante tempo. Havia algo naquele homem que o deixava desconfortável. Não sabia o quê, mas, desde que tinham sido apresentados, não costumava se sentir bem em sua companhia. Escutou um carro estacionar a poucos metros de distância.
Sebastian desceu e caminhou em sua direção, o olhar vagando pelos arredores, averiguador. Como se lembrava, não havia residências nem estabelecimentos naquele ponto da estrada: o local era deserto, ou quase, pois de tempos em tempos carros passavam em alta velocidade, mas o fluxo de modo geral era pequeno. Se fosse rápido... Hélio, notando sua aproximação e distraído com as ferramentas que recolhia, disse que não precisava ter se incomodado, pois realmente podia lidar com aquilo, já tinha até terminado...
Ouviu então um estalo. Em seguida, um ruído incômodo, um zumbido, pareceu ecoar dentro da sua cabeça. Sua visão começou a ficar turva e, ao cabo de alguns segundos, não conseguia enxergar nada além de borrões. Notou algo quente escorrer pelo pescoço e encharcar a gola da camisa. Imbuído de terror, balbuciou um pedido de ajuda, mas as palavras, refletindo o caos em que mergulhavam seus pensamentos, saíram desconexas. Sentiu um objeto encostar em sua têmpora e escutou um segundo estalo: depois disso, tudo escureceu.
Sebastian abriu a porta traseira do carro dele e puxou o corpo para dentro. Sem demora, partiu para a chácara. Na tarde daquele mesmo dia, o automóvel foi afundado na parte mais profunda da lagoa e o corpo queimado, sendo os restos calcinados enterrados na floresta aos pés de um rochedo cinzento não muito distante das trilhas onde ele e Benício, tempos depois, usariam para correr e fazer caminhada. Do fogo poupou somente a cabeça, que conservou em formol.
Examinando as coisas do morto, descobriu que ele tinha as senhas dos cartões de crédito salvas no telefone. Os cartões estavam na carteira que achou no bolso da calça. Para confundir as autoridades, que não tardariam em investigar o desaparecimento, retirou todo o dinheiro que encontrou nas contas bancárias. O dono do estabelecimento onde realizou o saque, em troca de uma propina generosa, concordou em sabotar as próprias câmeras para que nada ficasse registrado.
Usou parte do dinheiro para pagar as despesas de Benício depois que ele perdeu o emprego, o que deixou o amigo, além de muito grato, sob sua dependência financeira. Isso facilitou a reaproximação. Com o tempo, percebeu que Benício parecia inclinado a um luto perpétuo: ele dava sinais de que não superaria o companheiro enquanto tivesse esperança de ele fosse encontrado ou que seu desaparecimento fosse explicado. Como isso era uma obstáculo ao seu projeto de conquistá-lo, teve a ideia de mandar a mensagem de texto. Não contava, porém, com a tentativa de suicídio. Deparar-se com ele desacordado no chão do apartamento tinha sido o único momento, desde o assassinato, em que se sentira realmente culpado.