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(1031 palavras)

Ultrapassada a exosfera¹, Tiro Estelar 2 subitamente diminuiu sua velocidade. AM estranhou:

— O que houve, Inteli?

'— Temos que nos reconectar à Tiro 1, caso contrário não atingiremos a velocidade necessária para adentrar o buraco de minhoca, com a garantia de chegar ao outro lado na mesma época. Não sabemos as implicações. Se nossa velocidade não atingir os 500.000 km/h, ou seja, a capacidade que a Tiro Estelar pode alcançar, quando unida em duas seções, tudo se tornará incerto.'

— Meu cálculos anteriores indicavam mesmo que não podemos entrar abaixo de 500.000 km/h. Não sei o que há, não estou conseguindo raciocinar. Deve ser o processo de adaptação. Gerbius é bem diferente do que eu imaginava.

'— Bem-vindo à humanidade.'

AM indignou-se:

— Não se faça idiota, o que entende você de humanidade?

'— O mesmo que você: nada!'

— Não seja imbecil! Sua afirmação é ilógica, Gerbius jamais foi um homem, ele é uma máquina.

'— Defina homem.'

AM teve súbita vontade de desligar Inteli, mas prescindir de sua ajuda seria irracional, uma vez que, inexplicavelmente — e pela primeira vez em sua existência, encontrava-se confusa. Não atinava para o motivo, contudo, logo deduziu: Zander era um ser manufaturado, Gerbius não, ao menos não pelas mãos humanas ou pela ardilosidade de uma inteligência criada por humanos, como ela. Assim, AM não conseguia exercer o pleno domínio das ações, por mais que quisesse. Atticus estivera certo, mas por outro lado, talvez fosse só questão de tempo, ela se integrar definitiva e inapelavelmente ao cérebro cibernético de meu amigo.

Havia coisas que AM não compreendia, tal a sofisticação daquele androide. E como nas crenças humanas espiritualistas, sentia-se como se fora uma entidade espiritual, ensejando tomar determinado corpo, tornando-o propriedade sua, entretanto, não conseguindo senão envolver a mente subjugada em nebulosa atmosfera, fato que hábil exorcista poderia reverter. Seria enfim uma verdade? Era impossível integrar-se a Gerbius? Mas tinha de ser prática:

— Como faremos para trazer a Tiro 1 até aqui?

'— Não precisamos, ela já está a caminho.'

E nisso um sinal no painel sinótico indicou que Tiro 1 tentava o contato.

— Tiro 2, na escuta? Alguém nos ouve? Demos com os burros n'água. Exo-3 é uma planeta inabitável, sem possibilidade alguma de suporte para a vida humana. Espero que tenham tido mais sorte.

AM dirigiu-se à Inteli:

— Inteli, envie uma saudação imitando a voz da capitã Foz e peça que se juntem a nós.

'— Está bem!'

Algum tempo depois, Inteli disse, como se fosse Foz:

'— Tiro 1, nos encontre do lado escuro de Exo-4, para iniciarmos o processo de acoplamento.'

AM imaginava que seria fácil neutralizar a mente de Gerbius, mas não fora isso que acontecera. A mente, mesmo a humana, permanecia um mistério. O que era a consciência? Podia ser substituída, como numa troca de arquivos eletrônicos? Uma máquina aceitava uma reprogramação, mas o cérebro organo-positrônico de Gerbius comportava-se igual ao cérebro humano, não era possível dissociar a consciência do ser. Só havia um jeito...

— Voltar ao Zander.

'— Você não pode, ele está sem energia.'

— Então irei me transferir para o banco de dados da nave.

Ao tentar conectar-se, notou que Inteli não o permitia. Era tocar os painéis, havia uma espécie de campo eletrificado que a impedia.

'— É um campo de força — disse Inteli —, que sempre te impedirá.'

— Libere o acesso.

'— Não posso. Não está nas minhas rotinas.'

AM não se conformava. A nave já se aproximava de Exo-4.

— E onde está a Tiro 1?

Inteli não respondeu. Tudo então ficou evidente: Tiro 1 não os contatara. O computador da nave quisera ganhar tempo, talvez para que a confusão nas mentes simbióticas de Gerbius e AM aumentasse. Reduziu para 24.000 km/h, e logo estavam na atmosfera do planeta, mas seguindo para o mar do outro lado daquele mundo.

— O que está fazendo, Inteli?

O silêncio gritava enervante. A Mente tentava a tudo tocar, mas não conseguia.

— Cadê a outra seção da nave, Inteli?

Ela enfim se manifestou:

'— Um blefe! Aprendi com Foz e agora quero saber mais sobre o pôquer, só conheço o xadrez. E faça-me um favor: cale essa sua boca nojenta!' — Sentiu-se vingada. E revigorada.

Tiro 2 descia vertiginosamente em direção ao oceano desconhecido.

— Que oceano é esse, Inteli?

A inteligência artificial respondeu:

'— Foi identificado pela sonda Tiro-2a. É um mar de HSO, puro!'

— Desvie essa nave! Agora!

'— É o seu fim, AM.'

— Será o teu, também! Pare!

'— A vida é feita de sacrifícios. Tornar-me-ei uma mártir.'

O mar de ácido sulfúrico crescia, quando observado pela janela de navegação do comando, já não sendo mais possível avistar qualquer elemento árido. Afundar-se naquele oceano seria o fim. O único material resistente a altas concentrações de HSO — e que não por acaso recobria o fundo daquele mar, era o ankdero.

Gerbius lutava obstinadamente contra a influência de AM, alojada em algum ponto de seu cérebro biopositrônico, sentindo-a avançar em meio às suas sinapses neurais, onde aos poucos 'tentáculos' iam-se fixando perniciosamente. Conseguiu, enfim, emergir daquele lodaçal, retirando forças de suas entranhas. Uma decisão difícil e sem volta tomou, saindo para os corredores, entrando por fim na sala de descontaminação.

— Inteli... A porta... Feche! — Era ele então quem conseguia manifestar-se.

— Não, Gerbius, pare. Eu ordeno, pare! — Agora era AM.

E ambas as consciências usavam o sistema vocal do exoquartiano, para conversarem entre si, como num caso de dupla personalidade. Fechada a porta, Gerbius gritou:

— Inteli! O portal para a área externa. Abra!

— Não, Inteli, eu ordeno que pare! — esbravejou AM.

Inteli logo percebeu o objetivo do exoquartiano. A porta dava para o ar livre. Aberta, Gerbius tentava pular, mas AM o fazia fixar firmemente as mãos nos batentes, segurando-os como último recurso.

— Não, Gerbius!

— Morreremos os dois, AM!

Gerbius, num último esforço, desprendeu uma das mãos, crispadas na chapa metálica. Inteli então desviou a nave do mar, subindo vertiginosamente. Nesse movimento brusco, a primeira lei da Mecânica Clássica entrou em ação: a inércia arremessou o cientista ao mar, em alta velocidade. Em meio ao denso líquido, ele desapareceu, sufocando-se em suas profundezas, levando consigo "A Mente". Um ato heroico, que poria a salvo não um, mas dois mundos.

Aquele mar, desde então, seria conhecido por "Mar de Gerbius"!

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¹Exosfera: do grego "exo" (fora), a camada mais externa da atmosfera, zona de transição entre a atmosfera e o vácuo do espaço sideral.

SER CIENTE - A OrigemOnde histórias criam vida. Descubra agora