Capítulo I

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Era a minha terceira taça de vinho, e o líquido púrpura escurecia o interior do objeto cristalino, tal como a noite tingia a paisagem que eu observava pela janela da minha cobertura. O lento passar dos anos não me impedia de apreciar a vista surpreendente da noite, no auge de sua incandescência silenciosa. Protegida pelo vidro grosso das largas janelas, os únicos sons presentes eram o da minha respiração calma junto ao característico tilintar ritmado causado pelo encontro do anel prateado adornando meu dedo indicador batendo contra o vidro da taça já pela metade em minha mão. Eu aproveitava com verdadeiro deleite aquele momento que poderia ser considerado por muitos como solitário ao extremo. A solidão, há muito, havia se tornado uma amiga inconveniente com a qual eu já estava acostumada a conviver.

Soava estranho pensar que, numa noite tão pacífica e silenciosa quanto esta, eu tinha sido amaldiçoada a viver pela eternidade compartilhando uma empatia profunda, cujas consequências me afetavam de forma particular e cruel. Bastava um toque, um breve e singelo contato para compartilhar qualquer sentimento trágico e forte, que algo ou alguém carregasse. Tinha tentado usar luvas, até me isolado no recanto mais remoto desta terra, mas não havia escapatória. Até mesmo um simplório pedaço de madeira carregava uma forte memória. Inescapável, era a minha punição.

Existiam certas precauções que aprendi ao longo da vida, como limpar objetos com sal grosso e água corrente. A mistura simples, por muitas vezes, conseguia diluir as energias emocionais. Contudo, minha sentença era clara e inevitável. Incidentes aconteciam de vez em quando, era óbvio, porém me esforçava bastante para evitá-los. Como qualquer pessoa comum, também tive que aprender a conviver com as consequências de lidar com sentimentos profundos – ainda que não fossem apenas meus. Com muita sorte, essas sensações se manifestavam como ecos distantes e passageiros, lembranças inoportunas que se dissipavam facilmente na minha mente.

Nem sempre eu tinha essa sorte!

Os sentimentos dos outros sempre se mostravam para mim, claros como água. Maldita fosse aquela mulher, que me julgou tão mal a ponto de derramar sobre mim uma sentença tão precisa e letal. Maldita fosse toda a sua geração! Era de se esperar que, naquela altura, eu já tivesse aprendido algo com tudo aquilo e a tivesse perdoado, mas era tão injusto pagar um preço tão alto sem sequer ter culpa de fato. Todos os dias, eu dedicava um momento para lidar com aquele sentimento persistente que me atormentava por anos. Apesar da longa insistência, eu às vezes conseguia acalmar aquela raiva antiga, como naquele momento, ao direcionar minha atenção para o tímido sol que anunciava um novo dia, mais um que eu lutaria para suportar a empatia profunda que estava enraizada em minha pele, tatuada à força na minha alma.

Nas últimas duas décadas, assumi a identidade de Eva Graham, uma jovem curadora de arte de 30 anos, de ascendência latina, encarregada do maior e mais renomado Museu de Arte Contemporânea da capital, Arantes. Havia escolhido um jeito produtivo de usar aquele castigo a meu favor, e viver cercada de arte – qualquer que fosse – transformava meu martírio em algo, minimamente, apreciável. Enquanto diversas pessoas lutavam para sentir as emoções dos artistas através de suas expressivas obras, para mim, bastava um toque. Realmente, eu sentia cada ínfima grama do sentimento que as motivaram. Cada dor no pulso, cada coração partido, cada lágrima grossa e quente escorrendo por um rosto contorcido em tristeza e dor. Sentia todas as emoções que uma experiência traumática poderia provocar. Absolutamente, tudo! Mesmo estando à frente do museu – o que fazia com que tivesse pouco contato com as obras – ainda assim, não conseguia escapar de sentir. No meu ponto de vista, valia a pena entender o artista, ainda que me doesse tal empatia.

Não podia negar que a maldição tinha seus lados bons. Ganhei certa resistência ao álcool e apesar de não precisar dormir com frequência, eu podia passar dias acorda sem ser afetada. Noites insones me eram bastante comuns, assim como o fim delas.

ArtemOnde histórias criam vida. Descubra agora