É intrigante como certos momentos acabam se tornando marcos temporais. O passado e o presente divididos por um único acontecimento impactante o suficiente. A fatídica noite que definiu minha vida, permanecia como uma memória resistente, uma marca impossível de se apagar.
Ashia... seu nome continuava a me assombrar mesmo depois de tanto tempo, e as lembranças que a acompanhavam ainda me feriam, mais profundamente do que qualquer outra memória que eu já tivesse compartilhado.
"O céu tempestuoso parecia trazer um mal presságio. O vento batia furioso contra as janelas do casarão comercial, e, eu estava lá, ansiosa, tentando negociar com o mercador, cujo olhar frio e calculista parecia inabalável. A tensão no ar era palpável, enquanto me esforçava para transformar cada palavra minha numa prova incontestável da inocência de Ashia. Ela estava em perigo!
Tinha ouvido os rumores sobre uma tentativa de fuga e estava desesperada para fazer o que fosse necessário para garantir sua liberdade. Eu sabia que se o mercador não cedesse, ela teria poucas chances de escapar com vida, então, cada argumento que eu apresentava era uma tentativa desesperada de alterar seu destino.
Eu não via Ashia como alguém que merecia ser subjugada pela cor da pele ou pela diversidade cultural. Eu não a via como escrava. Nossa relação havia transcendido as barreiras impostas pela sociedade de um século marcado pela barbárie e ambição. Em nossas inúmeras conversas, eu via não uma serva que cumpria bem suas funções, mas sim uma mulher de grande coragem e dignidade, que mantinha sua humanidade intacta em meio a tanta crueldade e desrespeito.
Nossa amizade floresceu de forma inesperada, forjada por longas conversas e olhares de entendimento mútuo. Apesar das correntes que a prendiam, eu podia ver o mundo através de seus olhos, onde a esperança e a desesperança duelavam. Ashia não era uma mera propriedade. Juntas, desafiávamos as normas sociais rigorosas da época, não pela nossa amizade improvável, mas por juntas ajudarmos aqueles que eram marginalizados, esquecidos e menosprezados. Eu aproveitava ao máximo a influência do meu pai, um barão que sonhava se tornar visconde. E naquele momento, esperava que essa influência também surtisse efeito para ajudá-la.
Depois de longas horas de negociação, finalmente, o mercador concordou em considerar uma das centenas de propostas que fiz. Entretanto, o destino, com sua habitual cruel ironia, não parecia disposto a conceder um final feliz, naquela noite. Meu alívio deu lugar a apreensão, quando, antes que eu pudesse comemorar, o caos se espalhou feito fogo em pólvora do lado de fora. O som de gritos e passos fortes cortou o silêncio da sala, e meu coração afundou ao perceber o que estava acontecendo. A iminente possibilidade de tudo desmoronar fazia minha pele arrepiar de angústia.
Corri em direção ao tumulto, o mais depressa que o vestido me permitia, e o que vi foi o desenrolar do meu pior pesadelo. Ashia, com os olhos arregalados de pavor, estava sendo arrastada pelo pátio como um animal, a vista de todos. Ouvi os murmúrios sobre mais uma tentativa de fuga, e que além disso ela havia ferido um dos feitores, o que só aumentou minha aflição. A cena era um mistura de medo e desespero, e eu me senti completamente impotente quando a vi sendo amarrada de costas no tronco no centro do pátio. A dor de ver o meu fracasso em salvá-la, foi esmagadora.
Meu pai surgiu de repente, caminhando calmamente até onde Ashia estava. O sorriso cheio de escárnio em seu rosto me deixou enojada. Ele não fazia questão de esconder sua satisfação frente à situação degradante a qual minha amiga se encontrava. Movida por uma raiva visceral, marchei em sua direção, desejando enfrentá-lo e tirá-la daquelas malditas cordas, mas braços fortes me seguraram me impedindo. Em puro desespero olhei a cena à minha frente, meu corpo se debatia agitado dentro daquela prisão de carne e osso. Eu rugi, furiosa, fazendo com que todos ao meu redor me olhassem surpresos, inclusive meu pai, cuja feição se transformou numa carranca sombria quando se deu conta de quem estava fazendo tamanho escândalo.

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Artem
RomanceEva é uma curadora de arte de um importante museu. Dona de um passado sombrio, foi inevitável que criasse uma armadura capaz de afastar todos ao seu redor. No entanto, o destino parecia ter pretensões próprias, ao cruzar seu caminho com Adélia Zwane...