Muito mudou em Divinel desde que Zutur foi sugado pela própria terra e jogado no mais profundo abismo. Desde aquele dia, Urs, o grande urso polar, passava a maior parte do tempo na caverna, dormindo, e quando acordado, se lamentava à beira do buraco que logo fora coberto pela neve.
Um certo dia, no entanto, uma movimentação no céu chamou a atenção dos animais nórdicos. Seres alados e armados se aproximavam; os Hyunir, liderados pela própria justiça, estavam prontos para descer até o mundo dos humanos e batalhar contra a transgressão. O equilíbrio dos mundos pendia na balança.
Entretanto, Urs, ingenuamente preocupado, colocou-se em seu caminho. Naquele momento, Yunai, firme em seu dever, proferiu:
— Aqui é a passagem, onde o tigre branco teve sua vida tomada. Abra!
Ao poder de sua palavra, a neve frente a ela derreteu, revelando a cavidade profunda.
Urs rugiu enfurecido, colocando-se entre a deusa e o buraco, mas foi barrado por uma força invisível aos seus olhos, uma pressão intensa que o deixou imobilizado. Rugiu furiosamente, sendo obrigado a assistir Yunai adentrar a passagem junto a seus filhos.
— Receio que não poderá nos impedir — disse ela, demonstrando indiferença aos seus sentimentos. — Essa área estará restrita somente àqueles que descerão até os humanos.
Naquele momento, uma chuva de estrelas caiu; as fadas, prontas para seguir os justiceiros até o reino abaixo, deixaram para trás sua terra natal e a própria imortalidade. Tristonhas, derramavam lágrimas, e delas brotaram flores no solo infértil. Contudo, desceram convictas de seu dever: proteger os humanos, formar um novo lar e viver novas vidas longe das terras sagradas.
O sentimento de dúvida pairava como uma nuvem sobre Divinel, enquanto os animais se mantinham reclusos sob a proteção dos elfos. No mundo humano, abaixo deles, uma batalha sangrenta sem precedentes se desdobrava. E suas próprias terras estavam prestes a correr o risco de ruir para sempre.
Não demorou muito para que Zutur subisse. A cada passo silencioso pelas escadas, seus mantos longos ondulavam como um mar de sangue. Regressou à sua terra natal, exaltando sua majestade e natureza ambígua, igualmente divina e corrupta. Seus olhos, sombrios como a escuridão de seus domínios, refletiam naquele momento a luz do luar carmesim, intrínseca a ele. Aproximando-se daquele que ansiosamente o aguardava, foi tomado por um sentimento distinto, o qual há muito tempo esquecera-se de residir em seu coração: gratidão.
Urs não podia acreditar que estava novamente diante de seu adorado Zutur. Seus olhos se enchiam de lágrimas enquanto sentia seu corpo livre das amarras do poder de Yunai, graças ao poder do senhor da escuridão. Foi então surpreendido por um abraço caloroso.
— Aquele que cuidou de mim terá sempre moradia em meus domínios — enunciou Zutur.
O urso então se soltou e olhou intrigado. Balançou a cabeça em negação e rugiu.
— Não temas ao Caos — prosseguiu o deus da corrupção. — Lá, sob a luz carmesim e proteção de meus corrompidos, não terás restrições, poderá matar aos fracos à disposição e deles alimentar-se, e assim, viver verdadeiramente sua natureza selvagem.
Insatisfeito, Urs continuou negando com a cabeça.
— Tolo! — indignou-se Zutur, se virando, ele abriu seus braços liberando suas asas de chamas vermelhas e subiu aos céus. — Logo tomarei Divinel para mim então não se preocupe, pois aqui também estará sob meus cuidados.
O senhor do Caos emanou seu fulgor, desdobrando suas asas em um ímpeto de raiva. Pelo céu crepuscular encarava satisfeito o leste, pois lá Solaro cumpria seu dever ao abaixar suas chamas douradas, enquanto no oeste, Lúmina começava a moldar o luar minguante com suas chamas prateadas. Disposto de tempo e carregado de ira, esbanjou suas chamas vermelhas como uma chuva ardente de retaliação.
O fogo carmesim se alastrava depressa, aumentando os domínios impiedosos da destruição. Contudo, duas forças opositoras a Zutur começaram a empurrá-lo com uma pressão avassaladora. Esse conflito, visto do mundo dos humanos, refletia o firmamento em uma mistura única de cores em que dourado e prateado duelavam bravamente com o vermelho aterrador. Solaro e Lúmina, mesmo em seus templos, esbanjavam suas próprias forças intensamente, sobrepujando ao terror carmesim que tentava se instaurar nas terras sagradas.
O senhor do caos, sucumbindo à força esmagadora, foi jogado sobre a neve, caindo próximo a Urs, que imediatamente correu a seu socorro. Zutur, no entanto, carregado de orgulho, o ignorou envolvendo a si mesmo em um manto ardente terrível, como se a fênix vermelha que habitava em seu interior estivesse para liberar todo seu poder e causar uma devastação irreparável. O que ele não esperava, no entanto, é que Urs tentaria segurá-lo.
O grande urso o envolveu, agarrando com todas as forças o senhor do submundo, que para ele não passava de seu amado filho. Em seu rosto escorriam lágrimas de dor, enquanto o fogo impiedoso do caos o dominava, alastrando-se rapidamente por seus pelos e corroendo até a camada mais profunda de sua pele. Naquele momento, seu choro reverberou por toda Divinel, provocando tristeza no coração de cada ser vivo. Seu amor incondicional não permitiria que Zutur lutasse e se ferisse, tampouco seguisse destruindo o que, para ele, ainda era seu verdadeiro lar.
— Tolo! O que acha que está fazendo? — exaltou Zutur. Naquele momento, já havia abaixado suas chamas. No entanto, seu poder, tão divino quanto corrupto, era demais para um mero animal, mesmo sendo tão forte e grandioso quanto o urso polar. — Você não deveria... POR QUE APENAS NÃO PERMANECEU QUIETO ESPERANDO POR MIM?
Naquela ocasião, o implacável deus do caos, que jamais havia derramado uma única lágrima, mesmo quando bebê, chorou sobre o cadáver de Urs, que caiu aos seus pés. Neste momento tão único, enquanto o manto da noite encobria o ambiente, as fadas irromperam do céu, guiadas por um instinto natural que sequer os deuses esperavam. Rodeando o corpo desfalecido do urso, entoaram cânticos mágicos, libertando o espírito de Urs das amarras de seu corpo físico, que não poderia mais suportá-lo. Sua aura, leve e brilhante, contrastava com a rigidez do inverno que o envolvia, enquanto as fadas o conduziam ao firmamento.
Tanto Solaro e Lúmina quanto Zutur ficaram surpresos com aquele espetáculo de luzes que desenhava a figura do urso, refletindo o branco das neves que cobria todo o norte. A deusa, atônita, chorava sobre os ombros de seu amado deus sol, que por sua vez irradiava um brilho assustador em seus olhos, lançando um olhar fulminante ao senhor do caos, prestes a se jogar em um ataque.
No entanto, para a surpresa dos deuses acima, Zutur virou as costas, caminhando até a cratera que o levaria de volta a seu reino tumultuoso. Enquanto descia as escadas, virou-se mais uma vez, despedindo-se silenciosamente de Urs, sob a luz das estrelas.
Passou-se o tempo, e uma lenda ganhava vida no Reino humano, tecendo contos sobre rígidos invernos nos quais o urso, com sua magnitude e ternura, estendia os braços no céu, convidando para um abraço caloroso e reconfortante; um gesto simbólico, porém poderoso, que infundia coragem nos corações mortais durante os dias mais gélidos.
Assim despontou Urso Polar, a primeira constelação de Divinel, como um presente sagrado a todos que precisam de conforto e proteção.
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Caminhos Divinos: Crônicas do Panteão Místico
FantasyEm um universo onde as estrelas dançam ao ritmo de divindades antigas, mergulhe nas páginas de "Caminhos Divinos". Descubra os seres sagrados de Divinel, suas origens entrelaçadas com a essência cósmica e o árduo caminho que percorreram para ascende...