Capítulo IV

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Boa leitura!

É uma segunda-feira escura, o mundo cai lá fora em uma chuva que parece não ter fim, o que me faz ter muita vontade de inventar que estou com uma gripe horrenda e posso passar para as crianças. Porém, a minha situação já é bem ruim, ficar faltando ao único meio que ainda tenho não é a solução, mas eu não apareço nas aulas da faculdade hoje.

Tento me arrumar adequadamente para que as crianças não achem que eu sou um fantasma, mas a escuridão ao redor dos olhos me entrega, meu cabelo parecia estar no pior dia dele e eu espero que já tenham normalizado roupa amarrotada porque é assim que eu estou saindo de casa.

Enquanto espero o elevador, vejo Enzo saindo de sua porta, mas ele desvia o olhar e vai em direção às escadas, deve ter se arrependido da oferta que fez e agora está com medo que eu aceite. Tento relevar e não dar importância exagerada a esse fato.

A partir do momento que piso na entrada do prédio, eu me arrependo de ter saído de casa, a chuva era tão forte e estava tão frio, vou chegar todo molhado ao meu destino, mais uma vez.

- Você quer uma carona?

Tomo um susto, olhando rapidamente para trás e vendo o Vogrincic parado enquanto esperava uma resposta, ele nem me olha e agora oferece uma carona, eu não consigo entendê-lo.

- Você me viu há alguns minutos e virou o rosto, agora você me oferece uma carona?

- Por que você está tão na defensiva ultimamente? Eu só imaginei que você não quisesse falar comigo.

Talvez, por alguns minutos, eu tenha me sentido mal por ir para cima dele com dez pedras na mão. Mas sempre fomos assim, eu e ele somos como cão e gato, sempre brigando e se atracando.

- Imaginou errado e eu não preciso de carona, obrigado!

Eu menti, eu quero muito essa carona, pegar um ônibus úmido não era nada atrativo se comparado a entrar no carro quentinho de Enzo Vogrincic com o próprio dirigindo.

- Ok, espero que ninguém te molhe pela rua novamente.

Ele sai em direção à garagem, penso mil vezes antes de ir ao ponto de ônibus, ter aquele homem dirigindo pra mim seria muito mais agradável aos olhos. Em um ato impulsivo, deixando meus pensamentos intrusivos comandarem eu vou atrás do homem, a fim de aceitar a sua oferta de carona. Dou de cara com o carro saindo da garagem e peço para abaixar o vidro da janela.

- Eu acho que quero a carona sim.

Ele destrava a porta do carro e eu tento abrir a porta de trás, mas ele só tinha destravado a da frente, me sinto nervoso com isso, mas penso que é melhor que pegar um ônibus. Espero ir em silêncio por todo o caminho e apenas desejar um “espero que tenha um ótimo dia” ao sair e Enzo parece querer o mesmo.

《...》

- Obrigado, motorista particular! Tenha um ótimo dia.

Eu falo assim que ele me deixa em frente a escola, ele riu do que disse e me mandou um beijinho no ar. Que ridículo!

As horas passaram rapidamente durante o estágio, eu tentei não pensar na ordem de despejo enquanto estou aqui, mas ainda torci internamente durante esse tempo para chegar em casa e as minhas coisas não estarem na rua.

Não pensar em tudo o que estou passando tem sido difícil, ainda não consegui dormir adequadamente desde quando li aquele papel. Por incrível que pareça, cheguei a considerar a proposta que Enzo me fez, por mais louca que possa parecer, nós meio que nos odiamos e agora vamos morar juntos? Não faz muito sentido.

A chuva continuava caindo impiedosamente lá fora, faltava apenas trinta minutos para que eu fosse embora e ela não parou por apenas um segundo. Apesar das crianças sempre me alegrarem, hoje eu só quero comer alguma coisa e me entregar ao sono durante toda a tarde.

《...》

Tento me proteger de levar um banho o máximo que posso enquanto espero o meu ônibus no ponto, minha barriga está roncando, os meus olhos estão muito pesados e o ônibus parece nunca passar. Um carro preto vem parando bem devagar do meu lado, se quiser me sequestrar vai sair no prejuízo, porém, eu tenho a impressão que já o vi em outros momentos.

- Abelinha, quer carona pra casa?

Fico levemente curioso quando vejo quem está no carro, na verdade eu nem preciso vê-lo, posso reconhecê-lo pela voz. O que ele faz no ponto em frente a escola sendo que ele nunca passa por aqui? Decido reunir todas as implicâncias que ainda restam no meu corpo para falar com ele.

- Estava me esperando sair do trabalho, querido? Você é um namorado tão gentil.

Escuto a gargalhada dele e tudo parece se aquecer, mesmo sendo um dia frio e chuvoso, a risada dele aqueceu tudo.

- Você está ficando mais louco? Devo ligar para um amigo psicólogo?

- Aceito a carona.

Dessa vez espero que o caminho não seja um completo silêncio, eu queria tudo menos ficar dentro da minha própria cabeça.  Não aguentando segurar a minha própria língua dentro da minha própria boca, comecei a perguntar coisas que eu tinha curiosidade.

- Com o que você trabalha?

- Eu sou médico, pediatra pra ser mais preciso.

Acredito que meu queixo tenha caído com a informação, estou simplesmente impressionado, o chamei de desempregado durante dois anos e agora ele conta isso?

- E você me fala isso agora? Eu te humilhei durante dois anos.

- Você me humilhou? Não se ache tanto, abelinha.

- Já falei pra não me chamar assim.

O silêncio reinou dentro do carro, agora a única coisa que passava na minha cabeça era que ele era médico, essa informação me deixou realmente surpreso, achei que era um encostado.

- Fala o que você tá pensando, parece que vamos ter muito tempo para conversar.

- O que?

- Engarrafamento por conta da chuva.

Eu quis me afundar naquele banco e chorar, a ideia de comer e dormir na minha cama quentinha foi por água abaixo, agora eu estava ali dentro de um carro com um homem extremamente bonito e que deu pra ser simpático do nada.

- Bom, já que me deu abertura para falar, tenho algumas perguntas.

- Como assim você é médico? Você me ofereceu moradia, por quê? Por que você me olhou com ódio na primeira vez que não vimos?

- Calma, Matías. Já comecei a me arrepender disso.

- Responde logo.

- Eu sou médico e você quase me afetou ficando tão surpreso. Eu te ofereci moradia porque ao contrário do que você pensa eu tenho empatia, você parece amar aquele lugar, amar as pessoas e tudo, pensei que não gostaria de sair. Eu não te olhei com ódio, você estava animado demais e chegou como se nos conhecêssemos há anos, eu achei que você era doido, agora eu tenho certeza.

Analiso todas as suas respostas, saber que ele teve empatia me deixou genuinamente feliz, gostei de todas as respostas. Mas eu tenho uma pergunta na minha cabeça em todos esses anos, eu não vou ficar em paz enquanto não tiver a resposta, porém, seria abusar muito da sorte.

- Você é hétero?

Coloco as mãos na minha boca imediatamente, eu pensei e saiu, não é possível que eu não consiga ficar de boca fechada. Só respiro fundo, ele não parece que vai responder. Pensei que ficaríamos em um silêncio constrangedor, mas ele me deu uma resposta.Eu não sou.

-Não, Matías, eu não sou.




Espero que estejam gostando!

same wall | Enzo Vogrincic e Matías Recalt Onde histórias criam vida. Descubra agora