Ainda que aquela manhã eu estivesse miseravelmente cansada e farta do piso duro e desconfortável do salão, seguia movendo meus pés conforme as orientações da experiente e metida a francesa Srta. Leroy. Cada dedinho do pé ansiava por um descanso, internamente, eu só queria uma cama para descansar. Ainda que eu estivesse matando meus calcanhares e sentindo cada calo causado pelos movimentos, a música clássica era lenta o bastante para causar me um bom sono.
Pensei que a aula estava chegando ao fim após a décima quinta repetição. Suspirei aliviada e senti meu pobre calcanhar tocar o chão novamente, mas a Srta. Leroy berrava para continuarmos:
- Mais uma sequência! Cinco, seis, sete e oito...
Não vou mentir: a dura verdade é que eu não gosto de ballet. Não me entenda mal, as habilidades de uma bailarina são incríveis, e qualquer menina já desejou praticar um dia — inclusive eu. No entanto, com o tempo, descobri que meu pai apenas queria que eu me dedicasse a isso, para seguir os passos da minha mãe. Ela foi uma "bailarina profissional", uma das melhores da europa.
Só que ele apenas não enxerga que, enquanto ela amava a dança, eu apenas faço isso para agradá-lo. Ou talvez ele enxerga, e só se finge de cego.
- Parabéns, meninas! Fim da aula. Lembrem-se de ensaiar em casa, as apresentações finais começarão em breve!
Sebastian vem me buscar todos os dias às 17h30, e como sempre, ele é muito pontual. Talvez seja por isso que meu pai nunca cogitou trocar de motorista.
- Boa noite, Srta. Winchester.
- Boa noite, Sr. Motorista.
Através do retrovisor, percebi sua expressão que dizia "essa garota não tem jeito", acompanhada de um risinho. Eu não gostava quando ele me chamava de "senhorita"; queria ser tratada como uma amiga e não como a filha do patrão.
Para mim, Sebastian era alguém que me compreendia como ninguém, apesar de ser cinquenta e cinco anos mais velho do que eu.Temos dois motoristas na família: Sebastian e Tony. Diferente de Sebastian, Tony não é muito amigável. Ele é muito profissional, e...só.
- Grande Sebastian, você é amigo da família! - Era o que papai sempre dizia. E ele estava certo. Sebastian era um grande amigo pra mim, mais do que só meu motorista.
Nos bailes, eu sou rodeada por pessoas querendo minha amizade ou interessadas em me agradar de alguma maneira. Nas aulas de ballet, as garotas competem para fazer dupla comigo durante os exercícios. Se eu juntasse todas as flores que já recebi dos rapazes ao longo da vida, conseguiria abrir uma floricultura, e as cartas que recebi dariam origem a milhares de livros. No entanto, por mais que eu recebesse carinho e atenção, nada preenchia o vazio dentro de mim. Esse era o meu maior problema.
Não me permito descansar. Quando chego em casa às 17h50, tenho aula de boas maneiras. Depois, devo estudar francês por pelo menos uma hora, o que me deixa ansiosa para o jantar após um dia exaustivo.
Desci as escadas e vi papai entrando pela porta principal, muito formal, como sempre. Ele colocou o chapéu no mancebo e, ao perceber minha presença, veio me abraçar.
- Como foi seu dia? - Perguntou ele.
- Foi... É, normal.
- Se normal for o oposto de negativo para os jovens de hoje, está ótimo.
- O jantar já está servido, senhor.
Disse a governanta, que adentrou minimamente no cômodo. Esta é Judite, ela sempre trabalha, e mesmo em seus piores dias, se mantém um doce de pessoa. Nas horas vagas também é minha amiga como Sebastian, mas com menos liberdade.
- Ah, Judite! - Papai chamou-a, enquanto nos dirigíamos à mesa de jantar.
- Sim, senhor? - Judite respondeu, enquanto nos seguia até a sala de jantar.
- Você faz um trabalho excelente na mansão, mas acredito que está sobrecarregada por ter que fazer tudo isso sozinha. - Até que enfim meu pai percebeu. Ele demitiu a faxineira e o jardineiro que costumavam ajudar Judite. Segundo ele, "não havia necessidade", mas todos sabíamos que havia. - Meu jardim está implorando por cuidados.
- Já encontrou alguém, pai? - Questionei, acomodando-me à mesa também.
- Ainda não... Judite, se conhecer algum parente ou conhecido que precise, ofereça o cargo.
- Sim, senhor. - Ela respondeu, sorrindo amavelmente.
Assim que terminou de comer, meu pai usou o guardanapo para limpar-se e se levantou.
- Irei para o meu escritório. Você já vai dormir, não é querida?
Assenti com a cabeça. Ficava exausta todos os dias com a rotina cansativa, mas odiava dormir cedo.
- Certo. Boa noite. - O mais velho me deu um beijo na testa e subiu as escadas. A noite estava tranquila, e a mesa posta para o jantar transmitia um ar de calmaria, ainda que solitária.
- Judite, acha que papai conseguirá encontrar alguém para cuidar do jardim? - Indaguei, curiosa.
- Tenho certeza de que sim, Srta. Ágatha. O Sr. Winchester sempre consegue resolver as coisas. - Ela respondeu, recolhendo os pratos e talheres da mesa e indo até a cozinha.
Agora, me encontro rolando na cama. Ainda nem fechei meus olhos para dormir, estou inquieta. Vejo as cortinas dançarem pelo vento que sopra do lado de fora, está ficando cada vez mais forte. Teimosa, me recusei a ir fechar as portas que dão passagem à sacada, mas depois de sentir o frio na beirada da cama, me levantei.
Meus pés gelados tocaram o chão frio, combinação perfeita para um arrepio. Parei e fiquei olhando para o céu estrelado. O silêncio, apenas cortado por um grilo que grita a noite toda. Como posso ter uma vista tão bonita e nunca parar para apreciar?
Apoiada no parapeito, me sentia tão acordada que pensei que poderia passar a madrugada toda ali. Engano meu, em questão de segundos, fiquei sonolenta e me rendi ao cobertor novamente.
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Além da minha imagem
RomanceÁgatha Winchester tem tudo o que uma garota da sua idade possa desejar: boa reputação, é filha de um banqueiro e herdeira da fortuna dos Winchester. Mas será que isso é o bastante? Insatisfeita com situações da vida, ela luta por seus interesses e p...