Capítulo 36

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A chuva havia da noite anterior já havia passado fazia tempo, mas o ar estava úmido. A terra fresca à minha frente estava úmida. Meus olhos estavam úmidos.

Leo, Flynt e eu estávamos aos pés do carvalho. Do meu carvalho. E, em frente a ele, um buraco no chão; o buraco onde jazia o caixão de meu pai.

Eu não conseguia desviar meus olhos da madeira marrom de simples entalhes dourados. Meus olhos percutiam o caixão de um lado a outro, como se, de repente, eu fosse encontrar uma resposta mágica de como trazer meu pai de volta.

Mas o caixão não carregava um código milagroso, era tão simples quanto parecia. Ele apenas indicava a morte, não a ressurreição. Era um fim sem retorno. O que eu havia feito não tinha retorno.

Toda a vida de meu pai não tinha retorno. Sua risada não tinha retorno. Não a risada estranha que ele tinha dado nos últimos meses, estando sob o controle de Bridget. Não, a risada que faria falta seria aquela aberta, contagiante e verdadeira. A que ele costumava dar quando algo realmente lhe divertia e encantava. Eu nunca mais escutaria aquela risada.

Eu nunca mais escutaria a sua voz animada, mas concentrada, enquanto falava de animais que tratara e tivera êxito. Seus olhos sempre brilhavam cheios de vida nesses momentos. Seus olhos nunca brilhariam novamente. Seus braços cuidadosos nunca mais me acalmariam depois de uma noite de pesadelos, tanto os criados por Bridget quanto os criados por meu próprio subconsciente. Eles também não me consolariam pela realidade que virara um pesadelo. Sua voz não mais sussurraria para mim "tudo bem" enquanto suas mãos acariciariam minha cabeça. Não, isso nunca aconteceria.

Nunca mais nos deitaríamos em toalhas de piquenique sobre a grama em frente à varanda para admirar as estrelas durante as noites de verão. Meu pai nunca mais me ensinaria o nome de constelações, nomes esses que eu perguntaria todas as vezes que nos deitássemos sobre as toalhas. E ele nunca mais me diria: "Acho que está testando os meus conhecimentos, mocinha." E nunca mais riríamos após isso.

Nunca mais compartilharíamos tardes de piquenique sob a sombra deste mesmo carvalho diante de mim. Meu pai nunca mais prepararia sanduíches de presunto, para ele, e sanduíches de maionese e pepino, para mim, para que servissem de lanche enquanto observávamos os animais nos campos e as nuvens sobre as nossas cabeças. Estava fresca em minha memória uma dessas tardes, quando eu tinha sete anos e discutíamos, entre risadas, o formato de uma nuvem. Eu dizia que ela se parecia com um coelho e, só para me fazer rir, meu pai insistia que se parecia com um sapo. Me concentrei na felicidade daquela minha versão tão jovem, mas ela parecia tão distante para mim.

O que será que aquela garotinha de sete anos pensaria de mim, se soubesse o que fiz?

Então, meu peito doeu desesperadamente pela necessidade de abraçar o meu pai. Eu precisava de pelo menos um abraço, só mais um, um último abraço...

_Milla? – Ouvi a voz de Flynt ao meu lado, me fazendo retornar para aquele instante. Foi então que eu percebi que eu estava de joelhos sobre a grama molhada, com as mãos sobre a terra fresca, e soluçando inconsolavelmente.

Flynt se ajoelhou ao meu lado e tentou me tocar, mas eu me afastei.

Olhar para o caixão que aprisionava o corpo sem vida de meu pai tinha se tornado intensamente doloroso, e eu precisava desesperadamente não olhar mais para ele. Comecei a jogar, furiosamente, a terra que estava à minha frente sobre o caixão abaixo. Flynt, ao meu lado, parecia não saber o que fazer, mas Leo levou apenas alguns instantes para começar a fechar a cova com a mesma pá que ele usara para abrir.

Tão logo o buraco estava, finalmente, selado, apoiei minha mão direita sobre a terra fofa, parecendo tão branca e pequena para os meu olhos.

_Nós contra o mundo. – Sussurrei. As palavras que meu pai me dissera algumas vezes, e nas quais eu costumava acreditar tão fortemente, soaram erradas e mentirosas em minha boca. Porque, no final, não havia sido nós dois contra o mundo; havia sido nós dois, um contra o outro. No final, era eu quem tinha o matado.

Me senti exausta, de repente. Fechei os olhos e me deixei cair para trás, para o peito de Flynt. Seus braços me envolveram e minha cabeça se escorou entre seu ombro e seu pescoço. Foi só aí que percebi que estava tremendo e que algumas lágrimas escorriam por minhas bochechas.

Flynt não fez mais nada além de me manter em seus braços, e fiquei grata por isso. Leo apoiou a pá sobre o ombro e rumou para casa, deixando-nos a sós. Mais uma vez a chama da gratidão por Leo queimou em meu peito.

Ficamos em silêncio pelo que pareceram minutos. A cada segundo a culpa de ter sido a responsável por isso se agigantava dentro de mim. Até que acabei por admitir a verdade, na esperança de que parasse de me consumir. Ou talvez eu apenas não tivesse mais controle sobre minhas ações.

_Fui eu. – Senti as palavras escaparem da minha boca. A minha voz soava estranha e distante. Minha garganta arranhava. _Fui eu. A culpa é minha.

_Shh. – Flynt disse afagando meus antebraços. _A culpa não é sua.

_É sim. Eu matei meu pai. – As palavras carregavam o gosto amargo da verdade. _Matei meu pai.

Senti Flynt ficar tenso atrás de mim, suas mãos pararam de acariciar meus braços.

_Do que você está falando, Milla? – Seu tom era atento e alarmado.

_Estou falando que atravessei o estômago do meu pai com a merda da minha espada. – Deixei escapar o início de uma risada sem humor.

Flynt ficou quieto por tanto tempo atrás de mim que pensei que ele pudesse ter literalmente congelado. Mas então seus braços se enrolaram em minha barriga e me comprimiram contra o seu peito. Percebi que minhas mãos mantinham um aperto de ferro na barra da camiseta dele, o que deixara parte de sua pele exposta. No entanto ele não demonstrou sentir frio algum.

Continuamos assim por muito tempo, até que o sol começou a se por. O céu se colorindo de laranja. Será que o fogo que queimava Bridget no inferno era laranja assim também?

Minha memória se voltou para a noite anterior, as palavras de Bridget de repente frescas em minha mente. Havia algo implícito ali, naquelas frases que fizeram a sombra de uma ideia se formar em minha cabeça.

Em um salto, me desprendi de Flynt e fiquei em pé.

_Milla? – Flynt me chamou, mas eu já estava rumando para casa, às pressas, praticamente correndo. Quando ele gritou meu nome novamente, eu já tinha alcançado os degraus da varanda.

Quando passei pela porta, nem me dei ao trabalho de fechá-la, segui diretamente para as escadas que me levariam até o andar de cima.

_Milla? – Leo apareceu nos pés da escada quando eu já estava na metade. Um instante depois, Flynt apareceu pela porta que eu havia deixado aberta. _Onde você está indo?

Não perdi tempo respondendo à pergunta, apenas terminei de subir a escadaria. Sendo guiada unicamente por meu instinto, adentrei o quarto de meu pai. Quando Leo e Flynt entraram no dormitório, eu já havia revirado metade do cômodo.

_Milla, – Flynt disse se aproximando de mim. _Tente ficar calma. O que está fazendo?

_O roupeiro! – Exclamei baixinho para mim mesma e segui até ele, ignorando Flynt completamente. Abri as portas e comecei a tirar as roupas lá de dentro. Joguei algumas peças aos pés de Flynt.

_Milla! – Flynt gritou exasperado, atraindo minha atenção. _Pare, ok? Se acalme.

Apenas virei as costas para ele e tateei o fundo do guarda-roupa até encontrar. Assim que pressionei o pequeno botão no canto, um barulho alto foi ouvido e o retângulo no fundo do roupeiro se abriu.

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