Quattro.

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— É realmente uma pena que Scott não tenha completado a corrida. — Jinki segurava firmemente o microfone enquanto descansava a mão livre no colo. Ainda usava o macacão vermelho da equipe, embora agora aberto até a cintura, expondo a roupa térmica branca que usava por baixo.

A coletiva de imprensa acontecia há alguns minutos, e a primeira pergunta direcionada a si era sobre Scott, o que causava um certo desconforto em seu corpo, já que era ela quem subiu ao pódio, não Scott. Ainda que fosse totalmente compreensivo uma pergunta sobre seu teammate, principalmente quando ele abandonou a corrida após a batida com a McLaren de Febatista, ela esperava receber perguntas ou comentários sobre si, sobre sua vitória.

— Ele voltou agora da recuperação, estava ansioso para pilotar novamente. Não iniciou tão a frente no grid e ganhou posições ao decorrer da corrida, estávamos trabalhando num possível pódio com as duas Ferraris, ninguém esperava que algo assim fosse acontecer. Nunca esperamos, claro. — ela continuou, os olhos ora focados nos próprios pés, ora no entrevistador que o perguntou sobre.

De canto, ela via todas aquelas câmeras apontadas para si, algumas a filmavam, outras tiravam fotos, fosse equipe de jornalismo, de média da própria Fórmula 1 ou da própria Ferrari, Jinki tinha todos os olhos sobre si enquanto falava, incluindo dos outros pilotos com qual dividia o pódio. Malena havia falado também sobre a situação de Febatista, uma pergunta quase idêntica a que Jinki respondia agora, já que eram seus dois companheiros envolvidos. Mas Malena falava com uma leveza muito maior, uma confiança que Jinki não possuía, não para aquilo. Ela era assim, Malena não ligava para os comentários maldosos, ela sabia que estava ali para agradar os fãs, a equipe e, acima de tudo, agradar a si mesma.

Malena e Jinki faziam parte da minoria da Fórmula 1, uma minoria que muitos ainda se questionavam como e porquê estavam ali. Malena era lésbica e Jinki negra, e ambas eram mulheres brasileiras, carregavam um peso extra, ainda que Malena não fosse assumida ao público. Ela nunca escondia, na verdade, mas falar abertamente sobre isso implicava no fato de que muito provavelmente não poderia correr em alguns lugares onde ser LGBT+ era considerado um crime ou um tabu, e Malena amava correr. Não a leve a mal, ela também amava ser quem ela era, mas viver naquele mundo tão político e tão injusto não a oferecia muitas opções. Também não era como se o público não desconfiasse, e todos os outros pilotos e a equipe sabiam, mas assumir, usar a própria voz e dizer "eu sou" é muito maior do que qualquer um ali poderia medir.

E ainda, sobre Jinki, havia o fato de que ela nunca seria realmente levada a sério, nem para o público, nem para os jornalistas. Eles eram os piores, para falar a verdade, os únicos jornalistas dos quais Jinki gostava eram os brasileiros, afinal, eles se orgulham dela. Mas os gringos... Jinki sentia que eles a olhavam sempre com maldade. Sempre comentando sobre seu corpo ou sua capacidade, como se soubessem melhor do que ela o que é pilotar um carro de Fórmula a quase 300km/h. Eles, que apenas seguram um microfone e falam com uma câmera ao vivo, querem ensinar Jinki a se vestir, se portar e principalmente dirigir. Tentam ditar o que ela deve ou não fazer, se é ou não merecedora de estar onde está. Ela esperava que ao menos as jornalistas mulheres, assim como ela, que passam pelas mesmas coisas que Jinki passa, enfrentam o machismo e o assédio, ao menos elas fossem gentis. E ela quebrou a cara com a maioria delas.

Jinki queria mesmo ter a capacidade de Malena de não se importar com aquilo tudo.

— Mas é muito bom ter Scott de volta a ativa e esperamos que, para a próxima corrida, o resultado seja diferente. É o que buscamos. — ela finalmente completou, com um sorriso amigável, como se não sentisse nojo de todos aqueles homens.

Ela sentiu Malena tocar seu braço como se soubesse exatamente tudo que passou por sua cabeça enquanto agora era Cellbit quem erguia o microfone para responder algo. Aquilo tudo ia consumir a cabeça de Jinki quando voltasse para o hotel, certamente, e ela, ao menos, se sentia menos assustada sabendo que agora tinha Scott novamente ali, pronto para acolher ela em seus braços na primeira vacilada que sua respiração desse. Jinki não se abria com facilidade com as pessoas, mesmo com os resultados consideráveis das primeiras corridas da temporada onde correu com Cherry, a piloto reserva que assumiu o banco de Scott, ela esteve naquela montanha russa de emoções. A ansiedade em todo treino, o nervosismo a cada qualificação e o foco extremo durante as corridas, e então, quando saía do carro e da bolha que ele a envolvia e voltava a realidade, a pressão do mundo real tomava conta de si.

Quando Jinki começou a ter holofotes sobre si no mundo do automobilismo, ela amava ser uma pessoa acessível. Responder todas as mensagens que podia dos fãs, os comentários em seus posts, tirar foto sempre que a paravam e até mandar vídeos e áudios de feliz aniversário para alguém quando a pediam. Agora, isso era impossível. Ser uma pessoa famosa naquele mundo, ou em qualquer um, atraía pessoas ruins, e era impossível abrir sua dm ou comentários no Instagram sabendo a quantidade de pessoas maldosas que estariam ali, com uma força de vontade absurda para espalhar seus ódios para cima dela. Não conseguia mais responder comentários bons porque sempre teria que ler os ruins durante o processo, e isso afetava muito sua saúde mental.

Na cama do hotel, Jinki ainda pensava sobre tudo aquilo. Era simplesmente impossível não pensar, e às vezes tudo que ela queria era ter o poder de desligar sua mente. Como se adormecesse e não pudesse pensar em nada, mas ainda fosse capaz de realizar tudo necessário para viver; andar, respirar, piscar, sorrir, apenas não pensar. Ela sabia que não era possível, no entanto. Muita coisa em sua vida se resumia em ser ou não possível, já que constantemente pessoas tentam ditar isso. Desde criança, no kart, diziam que aquele sonho não era possível. Também falaram que arranjar um namorado sendo uma adolescente "nada feminina" não era possível, afinal, ninguém iria querer a garota num macacão de equipe, não é? Jinki deveria usar um vestido curto, colocar seus brincos grandes de argola e ir para uma festa numa sexta-feira a noite. Mas, espera, isso não faria dela muito atirada? Um vestido curto desse, por que ela está se mostrando tanto?

Jinki entendeu, um dia, que tudo que fizesse, seja como fosse, nunca estaria bom, nunca seria o suficiente. Se está de macacão, não é feminina, se usa um vestido, está implorando por atenção masculina.

— Você se sentiu ameaçado pela Ferrari em algum momento? — Jinki lembrava de ouvir alguém perguntar para Cellbit, durante a coletiva.

Ele se ajeitou no sofá ao seu lado para responder.

— Acho que todos os carros podem ser uma ameaça uns para os outros a qualquer momento. Se você se distrair ou subestimar alguém, independente de qual carro ele está, ele é uma ameaça. — era uma forma particular de pensar, embora Jinki concordasse com ele. — Jinki esteve colada em mim a corrida inteira desde que ultrapassei ela. — ele abriu a boca para continuar, mas a mesma voz o interrompeu.

— Você acha que isso se deve ao fato de que tivemos dois Safety Cars na corrida? Acha que ela teria se mantido tão perto se não fosse por isso?

Ninguém podia ver, porque ninguém prestava atenção em Jinki, mas sua cara não foi muito boa ouvindo aquilo. Até mesmo Cellbit pareceu desgostar da pergunta, já que cruzou os braços e arqueou uma das sobrancelhas.

— Não, não acredito que seja por isso. A Ferrari vem mostrando um bom desempenho, Jinki tem um carro rápido e é ótima piloto. Você não estava assistindo a corrida? Ela esteve me perseguindo com sangue nos olhos. Abri boas distâncias diversas vezes e ela sempre voltava a ficar a quase meio segundo atrás de mim. Ela é incrível, não precisa de Safety Car. — Cellbit era ótimo em ser sincero e ainda assim falar de uma forma que fizesse todos sorrirem satisfeitos com suas falas, mesmo que ele próprio não tenha gostado da pergunta.

Quero dizer, ele é um homem, todos estariam satisfeitos com ele independente do que fizesse. Cellbit poderia propositalmente jogar alguém para fora da pista durante uma corrida e alguém ainda acharia sua ação aceitável e daria um jeito de não criticarem ele.

Jinki sorriu pela primeira vez desde que voltou ao hotel, enquanto encarava o teto. Todos adoravam subestimar suas capacidades como piloto, principalmente numa equipe de ponta, extremamente tradicional e conservadora como a Ferrari, e saber que Cellbit, que não era tão próximo de si, havia dado uma resposta daquelas para mais um dos homens que adoravam fazer Jinki se sentir inferior fazia-a se sentir admirada, de certa forma. Cellbit não colocou os créditos apenas no carro por ser rápido, ele fez questão de dizer que ela era boa e que foi capaz de ameaçar seu primeiro lugar diversas vezes. Não porque o carro era bom, mas porque Jinki era boa.

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