Capítulo 3: Um Verdadeiro Filho da P***!

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2926 palavras.

    Quase cinco dias se passaram, desde o pronunciamento do prefeito e o barulho dos tanques, e das marchas, não cessaram. É como se a cada hora a tensão nas ruas piorasse. Fui ao portão de novo para observá-los algumas vezes e constatei que a situação vinha piorando gradativamente. Instalaram barricadas de tijolos, sacos de areia em frente à entrada de cada casa, inclusive, a de Kate, e há também algumas paliçadas distribuídas no meio da rua. Toda vez que me aproximo para olhá-los, sinto que um clima sombrio de guerra se estabelece, cada vez mais, na atmosfera das ruas.

    Os primeiros dias foram um caos. Certa vez Ryan teve uma crise e se desesperou tanto ao ponto de assustar Sarah e quase não foi possível fazê-la parar de chorar. Não o culpo por isso, afinal eu próprio estou tendo pesadelos todas as noites. Não sei o que esperar do que obviamente está prestes a acontecer, seja lá o que for. Pensar nisso sempre me traz Anna à cabeça. "Será que ela está bem?" — essa é a pergunta que não quer calar em minha mente. Limpo a lágrima e retorno para dentro de casa.

    Estavam os três deitados na cama de Kate, que era a maior da casa, enquanto Ryan lia "O Pequeno Príncipe" para Sarah. Após confirmar isso me encaminho para a cozinha para acabar de preparar o jantar. Refleti sobre o toque de recolher, não sabemos por quanto tempo permaneceremos exilados dentro de casa. Demos sorte de ser começo de mês, portanto Kate já havia feito a feira do mês e estocado a dispensa, isso nos proverá algumas semanas despreocupados em relação ao que comer. Contudo, ainda assim, estou racionando a comida e água que temos.

    Sou leitor assíduo de livros de horror e boa parte dos que já li que retratam cenários pós-apocalípticos, a comida se torna a primeira prioridade para todos (é até mesmo motivo de assassinato entres grupos). Se estivermos mesmo prestes a viver em um país de guerra, tenho certeza que um dia morreremos de fome ou bombardeados.

    Quanto aos bombardeios não podemos fazer nada, mas quanto a comida, podemos minimizar as porções ingeridas para que sobrevivamos o máximo possível. Tenho comigo, que é um pensamento inteligente... ou não. Na verdade, já não discordo do que venho ouvindo há anos: minha aptidão para cuidar de mim mesmo de maneira sábia, é cataclísmica (o que será desses três se isso perdurar por muito tempo?).

    E essa é a forma mais cortês de descrever que, se eu fosse escrever uma biografia um dia, a epítome dela seria: "O dossiê de um cidadão insensato e ininteligível, que é obstinado em viver em seu marasmo perverso, seleto pelo destino para levar uma vida repleta de subterfúgios voláteis. Um ser letárgico esculpido para residir e jazer em meio a melancolia tirânica de um emaranhado de consequências advindas de seus retrospectos isentos de ações verdadeiramente condignas".

    Ou não. É até engraçado pensar que alguém como eu estaria nas páginas de um livro que, apenas a julgar pela narrativa, seria um ícone da literatura clássica. Acabo rindo com essa ideia. Sentiria-me relativamente com o ego inflado se um dia visse minha irmã pegar um dicionário para decifrar algo que eu escrevi.

    Ou quem sabe isso apenas serviria para enfatizar o que eu mesmo já cheguei a confessar, embora estivesse bêbado em tal dia: "A Lise é bem mais do que uma figura na qual eu me inspiro, ela é a figura responsável por toda a culpa que sinto ao acordar todos os dias, olhar no espelho e constatar que não tenho seu carisma, sua inteligência e sua força de vontade para ser alguém um dia" - sim, eu sou o tipo de delinquente que, ao beber, fala suas verdades; porém suas verdades sempre se resumem a besteiras melosas e egoístas. Não me espanta que as pessoas que estavam comigo em tal dia me julgaram invejoso.

    É doloroso admitir, porém é verdade, Lise é a filha, dentre nós cinco, que quando nossos pais falam sobre, seus olhos brilham. Talvez todas essas suas intermináveis qualidades também sejam a razão pela qual eu a amo bem mais do que qualquer outro dos meus irmãos, mas também a mesma razão pela qual a odeio.

A Alvorada dos EsquecidosOnde histórias criam vida. Descubra agora