Cap. 3

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   Me deito na cama... Ou melhor, me jogo nela. Penso em como eu posso me sufocar com o travesseiro, em como posso me enforcar com o lençol. Mas sempre que tento fazer alguma coisa, meu corpo fica preso, como se cordas invisíveis me amarrassem e me prendessem. É frustrante.
   — Que merda! — xingo, me enrolando nos lençóis de seda e chorando. Chorando de raiva. Chorando de medo. Chorando de tristeza. Chorando por ainda estar viva.

...

   Na manhã seguinte sou acordada com o cheiro de torradas com manteigas e queijo assado, café com leite e panquecas com mel.
   — Bom dia, criança. — abro os olhos, pesados de sono, e vejo Zyron com uma bandeja de café da manhã, sorrindo gentilmente lado da minha cama.
   Coço os olhos e me sento. Percebo que eu havia dormido com o vestido azul prateado, não tinha posto um pijama... Se é que aquelas camisolas poderiam ser chamadas de pijamas.
   — Isso é... para mim? — pergunto com sono e confusa, olhando para a bandeja.
   — O que você acha? — ele se aproxima e põe a bandeja com cuidado em meu colo, se sentando frente a mim. — Eu não sabia do que você gostava, então pensei em apenas um café da manhã simples. Espero que goste.
   O cheiro da comida me fez salivar.
   — Para mim, qualquer comida está bom. — respondo, um leve tom de felicidade ousando transparecer em minha voz morta.
   Zyron sorri e me observa comer com calma e ternura nos olhos. O café estava morno e me acorda imediatamente, aquecendo todo o meu corpo.
   — Nunca a alimentaram direito, pequena?  — indaga o híbrido, depois de um período curto de silêncio.
   Hesito e olho para ele, procurando ver segundas intenções em suas feições ou algo para eu desconfiar. Lentamente, balanço a cabeça e volto a atenção para as panquecas macias e doces por conta do mel.
   — Sério? Nossa... Lamento por isso. — o tom chocado e ressentido de sua voz me pega de surpresa, me deixando desconcertada. Ele se importa? — Saiba que não deixarei você passar fome de novo. Nunca mais. Eu mesmo cozinharei para você o que quiser.
   Lambi o mel de meus lábios e lanço ao Zyron um olhar de surpresa.
   — Você... Foi você que fez esse café para mim? — indago, descrente.
   O homem sorri carinhosamente para mim.
   — Claro, Fiz especialmente para você. Não confiaria á nenhum dos meus cozinheiros a fazer uma comida para você sabendo o que poderia ocorrer caso um deles decidisse colocar algo de "especial" nela.
   Fico sem saber como reagir. Era muita gentileza da parte dele... ou podia ser manipulação? Como um Senhor podia ser tão gentil assim? Nem lembro da última vez que alguém, que não fosse minha mãe, fez algo para mim... que não fosse para me machucar. Desvio o olhar, sem jeito. Era estranho o jeito que ele me tratava. Quase como se eu não fosse insignificante. Quase como se eu não fosse sua serva, como se ele não fosse superior á mim.
   — Huh... Está muito gostoso. — murmuro, bebendo outro gole do café. Aquilo havia sido feito para mim. Apenas para mim. Sinto meus olhos marejarem, mas me contenho e não deixo que a criatura veja.
   Zyron se inclina em minha direção e ergue meu rosto pelo queixo de forma gentil.
   — Não tem problema chorar, doçura. — consola ele, carinhoso. — Você logo irá se acostumar com isso. Farei com que se sinta segura e á vontade. — com o dedão, enxuga minhas lágrimas, me fazendo corar um pouco. — O que fizeram com você foi tão ruim assim, Ayanna?
   Desvio o olhar, desconcertada.  Uma sensação estranha mexe com meu coração ao ouvi-lo pronunciar o meu nome com tanto carinho e maciez na voz. Apenas fiz sim com a cabeça.
   — Eu sinto muito. — lamenta o híbrido, soltando meu rosto.
   — Não sinta. — retruco. — Vocês não sentem de verdade.
   Era tudo um jogo cheio de manipulação para eles. Sempre foi para todos os Senhores, era divertido para eles. E nós, seres comuns e sem dons, somos os seus brinquedos. Eles nunca sentiam de verdade, nunca lamentavam ou se arrependiam.
   — Eu sinto. — murmura Zyron, numa voz baixa e suave, afagando o meu cabelo. — Sinto por tudo o que te aconteceu. Por tudo que teve que passar. Eu sinto a sua dor e lamento que tenha passado por essas coisas.
   Abaixo a cabeça, mordendo o lábio com força. Você não sabe o que eu passei.
   — Como saberei que você não está dizendo a verdade? — questiono.
   Observo-o enrolar um cacho do meu cabelo em seu dedo indicador,esperando que ele puxasse com força como tantos outros já fizeram comigo, mas ele não o fez.
   — Os dragões são conhecidos por boa fala, por dizerem a verdade com outras palavras e por sua possessividade, mas eles nunca mentem.
   Levanto o olhar para Zyron. Seus olhos negros de íris ametista emanavam carinho e ternura, junto com um sorriso suave em seus lábios.
   — E eu nunca mentiria para você, minha pequena. — acrescenta o híbrido, mansamente.
   Eu podia acreditar nele. Eu queria acreditar nele, acreditar que ele era diferente, que era um Senhor bom... mas seria perigoso. Termino o meu café da manhã em silencio, pensativa, e assim que termino, Zyron sorri novamente, deixando á mostra seus quatro pares de presas.
   — Posso escovar o seu cabelo? — pergunta ele.
   Congelo. Escovar o meu cabelo? Lentamente e hesitante, assenti, me sentando na beira da cama. Com um pequeno aceno de sua mão, faz a bandeja sumir, como se tivesse evaporado, e com a outra mão faz um pente pequeno aparecer. É magia. penso, apreensiva. Eu nunca gostei de magia e passei a sempre temê-la. Zyron deve ter sentido o meu medo, pois me deu um sorriso tranquilizador e ergueu as mãos.
   — Não se preocupe. Eu não machuco aquilo que é meu.
   Mordo o lábio e hesito antes de me aproximar e ficar de costas para ele. Não posso ficar vulnerável. Sinto ele deslizar as mãos em meus cabelos, seus dedos roçando em meu pescoço, provocando um arrepio em mim com o toque de sua pele quente. Fecho os olhos um pouco, enquanto Zyron escovava o meu cabelo com suavidade. Sinto um pouco de conforto aquecer e tranquilizar o meu coração.
   — Você gosta disso, não é? — comenta a criatura. — Está se sentindo melhor?
   Assenti, sorrindo suavemente. Ele termina de escovar o meu cabelo e começa á trancá-lo com cuidado.
   — Seu cabelo é tão macio e sedoso... — ouço o híbrido murmurar.
   Abro os olhos e olho por cima do ombro. O desejo estava estampado em seu rosto escuro. Meu coração dispara e desvio o olhar, nervosa.
   — Aquelas roupas no armário... — começo meio hesitante, tentando disfarçar o nervosismo. — Eu não gostei delas. Me senti desconfortável.
   Ele para de trançar o meu cabelo. Congelo, me preparando para ser repreendida ou agredida, mas Zyron apenas me pergunta num tom gentil.
   — Que roupas você prefere?
   Hesito, pensativa e um pouco desconcertada com a pergunta.
   — Roupas mais fechadas, longas e menos transparentes.
   Zyron resmunga, pensativo, e volta á trançar o meu cabelo, amarrando a ponta ao terminar.
   — Você ficaria muito bonita naquelas roupas, sabia disso? — murmura ele em meu ouvido, me fazendo ter outro arrepio.
   — Não tenho tanta certeza disso...
   O híbrido ri e beija minha cabeça. Um calor sobre pelo meu pescoço em direção às minhas bochechas.
   — Tudo bem, verei roupas melhores para você. Só peço que não descarte aquelas em seu armário, ok?
   Mordo o lábio, pondo a trança por sobre o meu ombro, deslizando os dedos por ela.
   — Ok...
   — Muito bem. — Zyron aproxima os lábios de meu ouvido. Sinto sua respiração quente em meu pescoço e enrijeço toda, o coração disparado. — Posso te abraçar, criança?
   Silêncio. Posso ver as suas asas enormes se moverem um pouco pela minha visão periférica. Me abraçar? Aperto a minha trança, apreensiva. Seria só um abraço? Ele faria algo caso eu permitisse?
   — Pode me dizer, se não quiser. — diz Zyron, carinhosamente.
   Fico sem saber o que responder por um tempo, ainda indecisa. Geralmente eu era forçada á fazer o que não queria. Nunca tive a chance de escolher.
   Devagar, respondo com um meneio de cabeça. Minha respiração falha quando sinto-o fechar os braços fortes ao meu redor, se inclinando para me abraçar. Sua pele quente me aquece e me traz um pouco de segurança e conforto, afastando um pouco a minha tensão. Solto um pequeno suspiro e sinto ele apoiar o queixo em minha cabeça. Que sensação boa...
  
— Se sente melhor? — indaga a criatura num tom gentil, mesmo sabendo a resposta. Faço sim com a cabeça. Ele me beija novamente. — Minha pequena. — murmura entre o beijo. Meu coração acelera.
   Então ele me solta e se levanta.
   — Vou providenciar roupas para você. Fique livre para explorar a mansão.
   Ergo as sobrancelhas, surpresa.
   —  Mas... você não deveria me acorrentar ou me trancar aqui para eu não fugir? — pergunto.
   Zyron sorri com carinho e desejo.
   — Você não vai fugir, Ayanna, por que você é minha. Minha garota. Não irei acorrentá-la nem prendê-la como se fosse um animal. — em seguida se afasta, mas antes de sair do quarto, me olha por cima do ombro e acrescenta. — Lembre-se: Está é sua casa, Ayanna, não a sua prisão.
   Dito isso, a criatura sai do quarto, enquanto eu permaneço sentada na cama, olhando para a porta e absorvendo as palavras dele, em choque e surpresa. Esta é minha casa... Não minha prisão?


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