Ando pelos corredores que levava aos outros cômodos da mansão e aos quartos dos nobres que viviam com o Zyron ou de outras Cortes que vinham visitá-lo. Havia algumas tapeçarias e quadros muito bonitos nas paredes em alguns desses corredores e cômodos. Me senti bem pequena e insignificante perante a beleza da mansão, quase como se fosse um fantasminha.
Também havia várias sala enormes para receber as visitas e um salão para bailes ou festas, mas que estava fechado no momento. Não lembro de ter participado de algum baile ou festa, afinal nunca me deixaram sair de meu quarto, exceto para ir à outro quarto mais escuro onde os Senhores e nobres se satisfaziam...
Em umas das salas que eu me atrevi a entrar, encontrei uma com várias estantes altas cheias de livro grandes e grossos, outros menores e mais finos, e vários pergaminhos. Me sinto tentada a entrar, seduzida pelo cheiro maravilhoso de papel, tinta e livro, porém não o faço assim que vejo os vultos dos serviçais de Zyron arrumando e tirando a poeira da biblioteca. Eu não os temia, mas também não gostava da presença deles. Era como se faltasse vida neles, o me fazia ter calafrios.
Fecho a porta de mansinho e saio logo dali. Entretanto, ao tentar voltar para o meu quarto, me perco no caminho. Essa mansão é muito grande. Ando sem rumo, tentando encontrar o caminho de volta, até que me encontro frente á uma sala com as janelas fechadas e iluminada pelas luzes fracas das velas. Consigo sentir o cheiro forte de vinho e hidromel misturado com outras substâncias embriagantes e ouço gemidos e risadinhas. Vejo vários casais em vários estados de nudez, tendo relações eróticas bem intensas entre si e outros envolvidos em uma orgia.
Noto que um dos nobres olha para mim e sorri de forma maliciosa. Sinto o pânico enrijecer o meu corpo e apertar o meu peito. Recuo, cambaleante, começando a suar frio. Não... Não... Outros nobres feéricos olham para mim, embriagados e cheios de malícia em seis olhos. De novo não...
Saio correndo dali o mais rápido que posso, sem prestar atenção direito para onde eu corria. Eu só queria ficar o mais longe possível daquela sala, mas mesmo longe, eu ainda sentia a pressão em meu peito e o pânico vibrando em meu corpo, a imagens deles ainda em minha mente. Me sentia tensa, assustada, como se eu tivesse revivendo tudo de novo como se eu tivesse voltado no tempo. Eu só quero sumir...
Viro á esquerda no corredor e trombo com tudo em alguém, me estatelando de costas no chão. O ar foge de meus pulmões e minha cabeça toda lateja assim que atinjo o chão. Espero que eu morra agora. Espero que alguém pise em mim e esmague o meu crânio.
— Ayanna?
Atordoada e assustada, abro os olhos, me erguendo pelos cotovelos. Era Zyron, acompanhado por uma fada de pele azulada e olhos negros, as asas de beija-flor batendo velozmente em suas costas. Zyron tinha uma expressão preocupada no rosto. Se inclina em minha direção, apoiando as mãos nos joelhos, e estende a mão para mim.
— Você está bem, pequena? — pergunta o homem, gentilmente.
Hesito, olhando dele para a sua mão e depois para ele novamente. Seus olhos se estreitam e sei que ele é capaz de ver o medo e as lágrimas em meus olhos, sentir o meu coração disparado e minha respiração travada na garganta. Trêmula, pouco a minha mão sobre a mão quente e enorme dele. A criatura segura com delicadeza e cuidado e me ajuda a me levantar. Em seguida se volta para a fada, que voava ao seu lado, e faz um gesto para dispensá-la.
Aproveito para enxugar os olhos com a cabeça baixa para que ele não visse. Mas, para a minha surpresa, Zyron me pega no colo pela cintura e me abraça de modo gentil e acolhedor. Congelo novamente, sem saber o que fazer.
— O que você viu? — pergunta Zyron num tom sério, porém calmo.
A imagem da sala me vem à mente e balanço a cabeça, sentindo o nó na garganta apertar mais.
— Me conte. — insiste o híbrido. — O que você viu, pequena?
Estremeço e um soluço doloroso escapa de meus lábios.
— Eu quero sumir daqui... — murmuro numa voz trêmula e embargada.
Zyron me aperta de leve para tentar me confortar, alisando minhas costas. Deito minha testa em seu ombro, deixando as lágrimas caírem, ignorando o arrepio que tomou conta do meu corpo com a sua carícia.
— Shh... Calma, pequena. Você está comigo agora. Só me conte o que viu.
Fundo e murmuro em poucas palavras o que aconteceu, sobre a sala, os nobres que vi e como eu me senti. Ele me aperta um pouco mais e sussurra em meu ouvido, num rosnado carinhoso.
— Nada vai acontecer com você. Eu prometo. Não irei deixar nada de ruim acontecer com você novamente, criança. — levanto a cabeça, fungando, e enxugo as lágrimas. O homem me segura pelos meus quadris com um braço, me fazendo corar um pouco, e afaga a minha bochecha. — O que fizeram de tão ruim com você, Ayanna, para ficar tão assustada?
Mordo o lábio e desvio o olhar para o lado. Tudo.
— Me põe no chão. — peço, me mexendo um pouco para sair de seus braços.
A criatura segura os meus quadris com firmeza, me fazendo soltar um pequeno ganido e me encolher.
— Não. Não vou por você no chão até que esteja mais calma. — diz ele, de forma suave.
Meu coração acelera e sinto uma pontada de pânico. Não... Por favor... Começo á tremer, mas Zyron sente meu pânico e envolve minha face com sua mão enorme num gesto gentil, sorrindo para mim.
— Respire. — diz ele. Mordo o lábio com mais força. — Apenas respire.
Inspiro pelo nariz e expiro pela boca. O sorriso dele se alarga.
— Isso, pequena. De novo, respire.
Respiro fundo e expiro mais algumas vezes, focando na sua voz e no calor de sua mão. Devagar, sinto o pânico diminuir e fico um pouco mais calma. Zyron sorri com carinho e ternura para mim e acaricia minha face com o dedão. Em seguida me coloca no chão com cuidado.
— Venha comigo. Quero te levar á um lugar. — fala o híbrido, estendendo a mão para mim.
— Para onde? — indago, hesitante e insegura. Para onde ele vai me levar? Eu não queria que Zyron me levasse par outra "sala de prazeres" como a que eu vi.
— Para um lugar onde daquela sala e que você vai gostar. — responde ele, tentando me acalmar e mostrar que eu podia confiar nele. — Você não quer sair um pouco daqui?
Meus olhos de iluminam e faço sim com a cabeça. Zyron sorri, satisfeito, e estende a mão para mim. Travo na hora, hesitante. Eu devo? Seria seguro? O híbrido percebe a minha hesitação e recua a mão.
— Poderia me acompanhar, então? — pergunta ele, gentilmente. Assenti e sigo-o em silêncio pelo corredor, acompanhando os seus passos largos. — Você não é muito de falar, não é?
Respondo com um meneio afirmativo de cabeça, alisando minha trança sobre o ombro.
— Eu gostaria de ouvi-la mais vezes. — pede o homem.
Levanto o olhar para ele, surpresa com o pedido.
— Eu aprendi que não deveria falar à não ser que pedissem. — explico, desviando o olhar. —E mesmo quando eu falava... não me ouviam.
A criatura franze o cenho e inclina a cabeça para o lado, cruzando os braços para trás.
— Sério? Lamento que isso tenha acontecido com você, criança.
Suspiro e abaixo a cabeça.
— É o que fazem com os servos. — murmuro, amargurada.
— Não na minha Corte. — diz o híbrido. — Eu não maltrato os meus servos. Além disso, você não é minha serva.
Ergo o olhar para ele, me sentindo ainda mais confusa. Não sou?
— Então... O que eu sou?
Zyron olha para mim com uma expressão cheia de carinho, ternura e desejo, um sorriso suave brotando em seus lábios e as pupilas se dilatando um pouco.
— Você é a minha Ayanna. — responde ele com um tom gentil e possessivo na voz. — Minha garota.
Sinto um rubor forte colorir o meu rosto e desvio rapidamente o olhar, sem saber como reagir. Ouço-o rir, afagando meu cabelo em seguida, e fico ainda mais sem jeito. Uma coisa era ser tratada como um objeto sem sentimentos, como uma boneca. Outra coisa era ser tratada como... Como Zyron me tratava. Era... Estranho, mas bom, reconfortante.
Caminhamos em silêncio até chegarmos á uma varanda aberta para o pátio com um lago, um belo jardim e uma grande macieira de copa cheia ao lado do lago. Olho para o lago, admirando a beleza dele e do jardim cheio de flores coloridas.
— O que está esperando. — indaga o híbrido, sorrindo para mim.
— Eu... Eu posso...?
— Você é livre qui, pequena. — diz ele. — Aqui não é a sua prisão. Pode ir.
Um sorriso grande se forma em meu rosto novamente e corro para o lago, parando em pé na sua margem e observando sua água cristalina. Consigo ver o cascalho no fundo e alguns peixinhos e salamandras nadando para lá e para cá. Escuto os passos pesados de Zyron vindo até mim e olho por cima do ombro.
— Eu posso vim aqui? Sempre que eu quiser? — peço, esperançosa.
Ele ri, feliz ao me ver sorrir e o quão animada eu estava.
— É claro, doçura.
Volto o olhar para o lago, observando suas pequenas salamandras rosadas enquanto o homem andava até a macieira, colhendo suas belas maçãs vermelhas e se sentando sob a sombra da árvore.
— Vem cá, pequena. — me chama de um jeito carinhoso, me oferecendo uma maçã. — Quero conversar com você.
Vou até ele e pego a fruta, mordendo um pedaço dela. Era doce como mel e com bastante suco. Que delicia! Zyron bate de leve na grama ao seu lado para eu me sentar junto dele. Me sento sobre os meus calcanhares com cuidado para a saia não subir.
— Quero que me diga o que aconteceu com você, minha pequena. — fala ele num tom gentil e calmo. — Percebo que você está muito assustada e insegura aqui. Não precisa me contar tudo se não quiser, mas quero que saiba que estou aqui para te ouvir, te ajudar e te proteger.
Olho para o lago, suas águas refletindo os raios do Sol como se fossem cristais. Será que eu deveria compartilhar os meus traumas com ele? E se ele me fizesse passar por todas elas novamente? Mas... ele disse que não machucava os seus servos... Mordo outro pedaço da maçã, mastigo e engulo, pensativa.
— Vamos começar aos poucos, certo? — sugere Zyron, vendo a minha indecisão. — Me diga, por que não gosta de ser tocada?
Olho para ele se esguelha e volto a atenção para o lago tranquilo.
— Porque já me machucaram bastante. — respondo, a vida sumindo de minha voz novamente.
Ele inclina a cabeça para o lado, a testa franzida.
— Os seus antigos Senhores?
Faço sim com a cabeça, estremecendo com a lembrança do que faziam.
— E alguns nobres das suas Cortes também.
Zyron olha para o lago e morde um pedaço da maçã, suas pressas afundando na carne da fruta, absorvendo as minhas palavras.
—Como a machucaram? —questiona ele, sua expressão ilegível.
Mordo o lábio, um arrepio desconfortável passando por todo o meu corpo quando me lembro de como eles me machucavam, de como se divertiam e riam quando eu chorava e implorava para pararem.
— Eles... Me espancavam... — murmuro, mas a minha voz trava na garganta. Estremeço e encolho os ombros. Eu não quero lembrar disso... Sinto Zyron passar a sua asa enorme ao redor de meus ombros, procurando me acolher e confortar.
— Apenas batiam em você? — pergunta suavemente, seus olhos cor de ametista me olhando com calma e ternura. Faço não com a cabeça, relutante. Ele franze a testa. — Os seus hematomas... — menciona a criatura, abaixando o tom de sua voz.
Abaixo a cabeça, me lembrando que foi ele quem curou meus machucados em meu corpo, inclusive aqueles mais íntimos e os que havia sido feitos por mim mesma. Ouço-o rosnar raivosamente e me arrepio toda, sentindo uma pontada de medo.
— Você não merecia isso. — diz ele, a raiva palpável em sua voz rouca. — Farei com que paguem pelo que fizeram, Ayanna.
Olho para o híbrido, assustada e chocada. Ele fitava com fúria o lado, seus olhos brilhando perigosamente. Ele se parece com a Senhora Zaya.
— N-não precisa fazer isso, Senhor.
— Não me chame assim. — seu olhar encontra o meu e ele suaviza a voz, assim como a sua expressão. — Me chame pelo meu nome.
Seu olhar penetrante, mas suave, faz meu coração acelerar e volto o olhar para a maçã em minhas mãos, sem jeito. Sua asa roça meu ombro e me puxa para mais perto de forma gentil e carinhosa.
— Venha. Sente-se mais perto de mim. — chama o híbrido.
Penso em recusar, sentindo meu rosto esquentar. Mas não havia nenhum traço de malícia em seu rosto e nem em sua voz. Zyron apenas sorri para mim e inclina a cabeça para o lado, a brisa brincando com os seus cabelos brancos. Devagar, me aproximo e me sento mais perto dele. Ele ri e morde outro pedaço da fruta, recolhendo a asa sobre meus ombros como se me abraçasse. Fico sem saber o que fazer.
Olho para as escamas escuras de sua asa e, um pouco hesitante, ergo a mão para ela. Não faça isso! Ele é um Senhor, você não pode tocá-lo á não ser que ele peça! Porém, ouso tocar sua asa com ponta dos dedos de forma tímida. Suas escamas eram duras, mas quentes assim como sua pele. Sua asa se mexe e recuo rapidamente a mão, nervosa. Mas Zyron apenas me acolhe mais com a asa e afaga o meu cabelo com a mão livre.
— Você é tão fofa, Ayanna. — ronrona ele, carinhosamente.
Abro um sorriso tímido, me aconchegando sob sua asa. Como o resto da maçã, observando o jardim. Não era como os outros "elogios" que eu estava acostumada a receber, mas eu gostei.
— Me diga do que gosta. — pede o híbrido.
Levanto a cabeça, observando-o afundar as presas na fruta, e franzi a testa.
— Do que eu gosto? Por que? — indago, sem entender.
— Quero conhecê-la melhor, minha pequena. — responde ele, depois de engolir o pedaço da fruta.
— Ah... — murmuro, voltando o olhar para o lago. — É que... Você é o primeiro feérico que me pergunta isso... Que quer me conhecer...
— É mesmo? — Zyron enrola uma mecha do meu cabelo em seu dedo, me observando com carinho nos olhos roxos. — Então sou um grande sortudo, afinal quero saber tudo sobre você.
Outro sorriso cruza o meu rosto e encosto minha cabeça em sua costela, escutando o som de sua respiração.
— Huh... Eu gosto muito de livros, de adagas e... de animais.
— Interessante. Qual é o seu animal favorito?
— Cobras.
— Olha só! Um parente distante meu!
Rio baixinho, mas tapo a boca com as mãos. Ele olha para mim e contorna a curva de minha orelha humana com o dedo de modo suave, mas que me fez ruborizar.
— Eu gosto da sua risada. — murmura a criatura, carinhosamente. — Não precisa se conter perto de mim, criança.
Abaixo as mãos, pousando-as no colo, pensativa.
— Você gosta de várias coisas em mim, mas do que você não gosta? — pergunto, curiosa.
— Da sua desconfiança e do seu medo de mim.
Fico em silêncio, chocada com a resposta dele. Ele não quer que eu tenha medo dele...
— Desculpa... — murmuro baixinho.
— Não. Não se desculpe. — fala Zyron, beijando o topo da minha cabeça. — Você não tem culpa. Eu vou ganhar a sua confiança com o tempo, irei me esforçar para isso nem que leve anos.
Meu coração fica quentinho ao ouvir as palavras dele. Sinto seu dedão voltar a contornas a minha orelha carinhosamente e delicadamente, me trazendo um pouco de conforto e tranquilidade.
— Sabe do que eu mais gosto em você, Ayanna? — fala o híbrido. — A curva de sua orelha e o seu cheiro.
Franzi testa, surpresa e confusa. Meu cheiro? Ninguém nunca havia falado do meu cheiro.
— Meu cheiro? — indago.
— Sim. Você tem um cheiro de mel. É doce e suave. Seu cheiro é único e maravilhoso. — responde a criatura com um tom de ternura e carinho em sua voz.
Não sei se fico lisonjeada ou envergonhada com as palavras de Zyron, minhas ficando tão vermelhas quanto a maçã que comi. Preciso me acostumar com esses elogios.
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Cicatrizes
FantasíaPor milênios, o mundo era governado pelos Senhores Elementais, divindades mágicas e poderosas de cada elemento, natural e mágico, do planeta e dos seres vivos. Cada Senhor ou Senhora tinha sua Corte formada por seres mágicos inferiores á eles (os co...