Cap.01

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Ela escrevera que gostava de caminhadas na floresta e de noites aconchegantes em casae que estava à procura de um homem com brilho no olhar. Era quase uma piada, comouma paródia da pessoa mais insípida do mundo. Ela também enchera o seu post comcarinhas sorridentes. Não havia uma linha sem um rosto amarelo.Eles tinham conversado ao telefone na noite anterior e concordado em se encontrar emGondolen.Anders achou que ela soava um pouco mais velha do que trinta e dois. Ele fez umapiada a respeito, afirmando que ela talvez tivesse postado uma foto de alguns anos antes,com alguns quilos a menos. Foi quando ela mandou a mais recente, tirada um pouco antesde ir para a cama, com o celular à altura do braço.Anders olhou para a foto e pensou que ela podia ter cem anos e ser gorda como umaporca, que ele não estava nem aí.Um drinque era melhor. Normalmente levava meio minuto para decidir se valia oesforço ou não. Jantar era como cavar a própria cova. Sentar ali, sofrendo durante horas,com um sorriso fixo. Não, qualquer pessoa com alguma experiência se encontrava para umdrinque. Se as coisas fossem bem, você sempre podia seguir em frente.Eram seis e meia em ponto, e Anders olhou para a rua escura em direção às luzes deSkeppsholmen e Djurgården.Qual era o problema?, ele se perguntou. Ela não podia estar representando a loira burra.Não com aquele corpo. Talvez uma risada horrorosa que perfurava os tímpanos. O hálitode um cão velho. Seria frígida?Não, não, fique calmo, ele se convenceu.O celular começou a vibrar. Anders atendeu.— Oi — ela disse. — Sou eu. Desculpe não ter ligado antes. Estive no pronto-socorro atarde inteira.— Pronto-socorro? Você está bem?Anders Egerbladh ficou impressionado com sua preocupação evidente. Isso era o queele chamava de estar ligado no jogo. Uma pergunta absolutamente natural, mas quetambém lhe permitiria saber se aquilo afetaria suas chances de levá-la para a cama.— Eu caí da escada e torci o pé. Achei que tinha quebrado, porque mal conseguia ficarde pé.— Ah, coitadinha...Anders deu um gole furtivo de cerveja e engoliu em silêncio para não parecerdesinteressado.— Não é tão ruim assim — ela comentou. — Tenho muletas e uma atadura de apoio.Mas pode ser um pouco difícil mancar até Gondolen, então pensei que talvez você pudessevir à minha casa. Tenho uma garrafa de vinho branco na geladeira.— Me parece ótimo — disse Anders. — Eu adoraria. Quer dizer, se não for incômodo...Podemos nos encontrar em outra oportunidade se você não estiver disposta hoje.Meu Deus, que gênio ele era.— Não é incômodo algum — ela assegurou. — Um pouco de animação vai me fazerbem depois de cinco horas no pronto-socorro.— Você tem algo para comer? — perguntou Anders. — Posso pegar alguma coisa nocaminho.Albert maldito Einstein.— Ah, obrigada, mas não precisa. Minha geladeira está cheia.Ela lhe passou o endereço e algumas orientações rápidas. Anders as memorizou edecidiu dar uma passada em um quiosque para comprar flores. Ele não entendia por quê,mas isso sempre funcionava. Flores e champanhe.O resto poderia esperar a próxima vez.Ele comprou algo colorido de caule longo e uma caixa de curativos infantis em umabanca de jornal. Um pouco de humor. Ele achou que seria um truque esperto.A passos rápidos, seguiu na direção da Katarinavägen, virou na Fjällgatan, bem comoela dissera, e continuou pelo lado direito da rua até chegar à Sista Styverns Trapp, umlance de escadas de madeira que ligava a Fjällgatan com a Stigbergsgatan, acima.Provavelmente chamada assim em homenagem a um estivador bêbado, refletiu Anders,que gastava todo o salário antes de voltar para casa, para a esposa desdentada e oscatorze filhos puxando a saia dela. Ele não prestou atenção no carro que estavaestacionado junto à calçada. Não ficaria sabendo que a mulher atrás do volante era amesma com quem falara há pouco por telefone, e que ela estava ligando para o maridonaquele momento para dizer que havia chegado a hora.Anders começou a subir os degraus entre os prédios antigos reverencialmenterenovados. Imaginou-se examinando com mãos sensíveis o pé inchado da mulher, a cabeçainclinada de compaixão, como ele massagearia os ombros tensos dela, seria compreensivo,concordaria e anuiria. Ela tivera mesmo de esperar cinco horas? O sistema de saúdesueco era verdadeiramente terrível.Anders não sabia que as fotografias que vira haviam sido copiadas da internet e queeram na realidade de uma mãe solteira da Holanda que tinha um blog. Tampouco sabia queo homem que encontrou nos degraus tinha um martelo enfiado na manga do casaco.Eles chegaram juntos ao degrau ao lado do banco do parque, cada um vindo de umadireção diferente. O homem parou.— Anders? — disse.Anders olhou para ele.— Não está me reconhecendo? — o homem perguntou. — O pai da Annika. Você selembra da Annika, não?Subitamente, Anders ficou com a garganta muito seca. O rosto, momentos antesrelaxado e cheio de expectativa, agora estava cauteloso e tenso.— Afinal de contas, não foi ontem — continuou o homem tranquilamente.Anders apontou os degraus com a mão vazia.— Estou com um pouco de pressa.O homem sorriu como se compreendesse e indicou as flores.— Vai encontrar alguém especial?Anders assentiu.— E estou atrasado — disse, tentando soar natural. — Se não fosse por isso, euadoraria parar e bater um papo.— Eu compreendo — disse o homem.Ele sorriu, mas não fez nenhuma menção de sair dali. Anders se virou, incerto, ecolocou o pé no degrau seguinte.— Eu falei com o Morgan — disse o homem, deixando o martelo escorregar até a luva.Anders parou no degrau, de costas para o homem. Ele não se mexeu.— Ou melhor, foi ele quem falou comigo — disse o homem. — Ele tinha muita coisaque queria desabafar. Até o último momento. Ele era pele e osso quando o vi. Deve tersido a morfina que o fez atentar tanto para os detalhes. Ele simplesmente não parava defalar.Anders se virou lentamente. De canto de olho, viu algo se movendo violenta erapidamente em sua direção, mas era tarde demais para se esquivar ou levantar os braçosem defesa. O martelo lhe acertou a cabeça e quebrou o crânio pouco acima da têmpora.Ele já estava inconsciente antes de atingir o chão.O homem se posicionou acima de Anders e levantou o martelo de novo. O segundo e oterceiro golpes foram os que provavelmente o mataram, mas o homem continuougolpeando para ter certeza. Como que para apagar quaisquer impressões e experiênciasque estivessem armazenadas no cérebro de Anders, esmagando toda sua existência. Ohomem só parou quando o martelo ficou preso no osso do crânio.Ele o deixou ali, olhou em volta apressadamente, então se afastou da escadaria eentrou no carro que o esperava. A mulher arrancou do meio-fio.— Foi difícil? — ela perguntou.— De jeito nenhum — respondeu o homem.

Não Voltarás (Hans Koppel)Onde histórias criam vida. Descubra agora