Cap.07

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— Precisamos passar no supermercado para comprar algumas coisas — disse Mike.— Posso ir na frente?Sanna olhou para o pai cheia de esperança.— É claro — disse ele. — Para que lado devemos ir? — perguntou, assim que ajudou afilha a colocar o cinto de segurança.— Pela água — decidiu Sanna.— Pela água — repetiu Mike, e anuiu para si mesmo como que enfatizando umaescolha inteligente.Ele desceu a Sundsliden, reduzindo para a segunda marcha na parte mais íngreme. Aágua se estendia despudoradamente diante deles, como se estivesse se exibindo. O espaçoera mais aberto agora que nos tempos de criança de Mike, embora houvesse mais casas.À medida que o preço dos imóveis subiu, a vista em si se tornou um trunfo e as árvoresforam cortadas. Casas aconchegantes, construídas como proteção contra o vento e asintempéries, foram substituídas por aquários projetados para ostentar riqueza.— Em breve poderemos nadar de novo — comentou Mike.— Está quente?— Na água? Não sei, talvez quinze ou dezesseis graus.— Dá pra nadar então, não dá?— Com certeza — disse Mike —, mas vai estar um pouco frio.Ele virou à esquerda ao passar pela casa que costumava chamar de Táxi do Johanssonquando criança. O proprietário do único táxi da cidade — um Mercedes preto com um bomtempo de uso sob o capô — vivera naquela casa e levara as crianças em idade escolarpara o dentista, em Kattarp, todos os anos. Outra pessoa morava lá agora, e não haviamuitos que se lembrassem do Táxi do Johansson, embora ainda houvesse uma placa velhaque dizia TÁXI na garagem.Muito havia mudado desde que Mike voltara dos Estados Unidos. As mulheres nãotomavam mais sol de topless, e havia uma variedade decente de canais de TV financiadospela propaganda. Carros desnecessariamente grandes tinham aparecido, e não era maisvergonha nenhuma usar jeans que não fossem 501 da Levi's.Assim que eles voltaram dos Estados Unidos, sua mãe abriu uma loja de roupas emKullagatan. Jeans e camisetas com UCLA e Berkeley escritos na frente. Quase todo mundona turma de Mike comprava roupas ali. Seus amigos ganhavam um desconto.O negócio estava indo bem, e seu pai tinha um emprego.Já adulto, Mike se esforçava para lembrar em que ponto tudo começara a dar errado.Às vezes ele achava que sabia a resposta, mas tão logo tentava se concentrar e lembrar,algo mais lhe ocorria que havia sido tão decisivo quanto.A morte de seu pai fora obviamente a principal causa. Ele batera contra a proteçãolateral de uma ponte, na saída de Malmö, quando Mike tinha treze anos. Sua mãe semprefalava sobre isso como se tivesse sido um acidente infeliz e desnecessário.Mike tinha dezessete anos quando percebeu que fora provavelmente um suicídioplanejado. Ele ouvira isso em outros lugares. Quando perguntou à mãe, Mike compreendeu,pela resposta um tanto vaga, que fora mantido no escuro por quatro anos.Ele ainda se lembrava do sentimento de alienação e vazio. Do isolamento absoluto. Denão ter ninguém. Mike sentia um vazio no estômago e um gosto metálico na boca.— É impossível saber com certeza — sua mãe disse. — Ele não deixou uma carta nemnada parecido. E parecia tão feliz.De acordo com os especialistas, isso não era tão extraordinário. Como se uma chamase acendesse e desse à pessoa que havia decidido eliminar a própria vida um breveperíodo de paz.Mike aceitara a traição de sua mãe havia muito tempo, mas a compreensão de queestava basicamente sozinho e de que não podia confiar em ninguém ficou marcada parasempre em seu coração.Isso soava um pouco estúpido, realmente. Nada havia acontecido com ele. E como ascoisas estavam bem agora, não? Com uma esposa, uma filha e um emprego bemremunerado.E, para ser honesto, Mike sentira a mudança muito antes da morte do pai. Quer dizer,não fora tanto uma mudança quanto um resvalar do bom para o ruim.Uns dois anos depois de terem voltado para a Suécia, seu pai havia perdido o emprego.A loja de jeans, que antes havia sido um passatempo lucrativo de sua mãe, se tornara aúnica fonte de renda da família. E as coisas começaram a ir ladeira abaixo quando osclientes escolheram ir ao shopping center em Väla em vez de comprar roupas na cidade.Ficou mais difícil acompanhar os vizinhos em uma parte chique da cidade onde umrelógio sem ponteiros não era mais algo impressionante.* * *— Você consegue falar?O homem deu um tapinha de leve no rosto de Ylva.— Água — ela balbuciou.— Dá sede mesmo — disse ele.Ele tivera o cuidado de levar um copo de água consigo. Então o segurou junto aos lábiosde Ylva e a deixou prová-la. Parte da água escorreu pelos cantos da boca, e Ylva tentouinstintivamente levar uma mão algemada para secá-la.— Você consegue beber sozinha — falou o homem.Ele pegou uma chave e abriu a algema em torno da mão direita de Ylva. Ela recuoucontra o encosto da cama até se sentar. Então pegou o copo e o bebeu de um gole.— Mais? — perguntou o homem.Ylva assentiu e estendeu o copo para ele, que foi até a pia e o encheu de novo. Haviauma espécie de cozinha, do tipo que tem em acampamentos, construções e dormitórios deestudantes. Duas placas de indução embutidas, uma pia e um balcão, e uma geladeiraembaixo. Talvez chamassem aquilo de quitinete, ela pensou. Mas não tinha certeza.Tampouco tinha certeza de por que estava pensando naquilo em primeiro lugar, dada asituação em que se encontrava.O homem voltou, lhe passou o copo e foi até a TV.— Por que estou aqui? — Ylva perguntou.— Acho que você sabe.Ela se virou e tentou tirar a mão esquerda da algema.— O que você acha da imagem?O homem apontou para a tela da TV.— Não compreendo — disse Ylva.— Um pouco granulada, mas está no zoom máximo. Talvez você não aprecie agora,mas espere alguns dias, uma semana. Então vai ser diferente. Aposto que você vai acertarseu relógio por ela. Apenas sentada aqui, olhando, sem poder fazer nada. Mas isso não éproblema para você, certo? Quero dizer, ficar olhando e não fazer nada.Ylva olhou para ele sem se mexer.— Do que você está falando?O homem a golpeou no rosto com o dorso da mão. De repente e sem aviso. A face deYlva queimou, mas o que a fez arquejar foi mais a surpresa com a violência do que a dor.— Não se faça de desentendida — disse o homem. — Nós sabemos exatamente o queaconteceu. Morgan nos contou. Confessou no leito de morte. Com todos os detalhes. Nósnos culpamos até aquele dia. E na realidade foi a sua turma. O tempo inteiro foram vocês.Ylva estava tremendo. Seus olhos estavam quentes, e ela piscava furiosamente. Seulábio inferior estremecia.— Você acha que isso não me assombra? — disse ela, reunindo forças. — Não passaum dia sem que eu...— Isso assombra você?A mulher entrara no recinto.— Assombra... você? — ela repetiu, enquanto caminhava até a cama encarando Ylva,que imediatamente se encolheu.Quando ela finalmente retornou o olhar, foi com olhos suplicantes.— Se eu pudesse mudar uma coisa na minha vida — tentou —, só uma...— O Morgan tinha só mais alguns dias de vida — falou o homem. — Isso me deixoufurioso. Que ele tenha se livrado dessa tão fácil. Acho que você leu sobre o Anders, nãoleu?Ylva não compreendeu.— O assassinato do martelo na Fjällgatan — disse o homem. — Não? Bem, acho que éfácil exagerar a própria importância quando você é parte de algo. Mas tem até um rótulopróprio: "o assassinato do martelo". Os jornais se esbaldaram.* * *Mike e Ylva haviam se conhecido no trabalho. Naturalmente. É no trabalho que em geral aspessoas se conhecem, sóbrias e com uma função a cumprir. Mike tinha começado haviapouco na companhia farmacêutica em Estocolmo. Ylva trabalhava no departamento demarketing e fora designada para entrevistá-lo para a revista interna da empresa.Nenhum dos dois se apaixonou perdidamente, mas se sentiram atraídos um pelo outroe se divertiam juntos. A infância de Mike fora feliz se comparada à de Ylva.Diferentemente dele, ela nunca havia conhecido o pai biológico, e a mãe era usuáriainveterada de drogas. Aos seis anos, ela foi adotada e, após alguns anos muitotumultuados na adolescência, decidiu sair de casa. Desde então, não fizera mais contatocom eles.Mike queria explorar o arquipélago de Estocolmo, do qual seu pai sempre falara comentusiasmo, então comprou um veleiro de seis metros, onde eles passaram os três verõesseguintes. Ele lia as cartas de navegação, ela segurava o leme, e eles fizeram sexo emcada enseada entre Furusund e Nynäshamn.Quando Ylva ficou grávida, prometeram um ao outro que, não importava o que viesse aacontecer, as coisas continuariam exatamente como antes. Nada os deteria, certamentenão uma criança pequena que eles poderiam levar consigo com facilidade.Quando Sanna tinha seis meses, o barco já estava vendido e o dinheiro investido emum apartamento.Um ano mais tarde, Mike recebeu a oferta de um emprego melhor em sua cidade natale, para a alegria de sua mãe, se mudou para Skåne com a família.Ter uma filha pequena significava mudança, uma transição significativa para uma novafase na vida. Do transporte público para um carro, de noites em bares para jantares comamigos, de um colchão no chão para uma cama de casal e nenhum tempo para se deitarnela. Os filmes pornôs de que eles tanto gostavam haviam sido eliminados depois queYlva, meio dormindo, ajudou Sanna, então com três anos, a colocar um DVD e, em vez dedesenhos animados do Gummy Bear, elas acabaram no meio de um boquete.Ylva avançara aos tropeços e desligara a TV.— O que foi aquilo? — ela perguntara envergonhada.— Sorvete! — sugerira Sanna, numa associação óbvia.Era outra vida, muito diferente dos verões no barco a vela. Mas era uma vida boa.

Não Voltarás (Hans Koppel)Onde histórias criam vida. Descubra agora