Cap.06

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Mike Zetterberg pegou a filha no clube de atividades extracurriculares às quatro e meia.Ela estava sentada a uma mesa no fundo da sala, absorta com uma velha caixa demágica. Quando viu o pai, seu rosto se iluminou como não fazia desde que ela começarano maternal.— Vem, papai.Sanna estava sentada com um porta-ovo à sua frente. Um porta-ovo de trêscompartimentos com uma tampa de plástico. Mike percebeu que o prazer dela em vê-lotinha alguma relação com se exibir para um público cativo.— Oi, querida.Ele a beijou na testa.— Olha — ela disse, levantando o topo do porta-ovo. — Tem um ovo aqui.— Estou vendo.— E agora vou fazer ele desaparecer num passe de mágica.— Será que você consegue? — perguntou Mike.— Sim, olhe.Sanna colocou a tampa de volta e moveu a mão em círculos, acima do porta-ovo.— Abracadabra.Então levantou a tampa e o ovo havia desaparecido.— O quê? Como você fez isso?— Papai! Você sabe.— Não sei — disse Mike.— Sabe sim, eu já mostrei pra você.— Mostrou?— Não é um ovo de verdade.Sanna lhe mostrou a parte central, que estava vazia e escondida dentro da tampa doporta-ovo.— Você sabia disso — disse Sanna.Mike balançou a cabeça.— Se eu sabia, então esqueci — assegurou.— Não esqueceu não.— Estou falando a verdade. Deve ser porque você é muito boa nisso.Sanna já havia começado a colocar as coisas de volta na bandeja plástica dentro dacaixa.— Você gosta de mágica? — perguntou Mike.Ela deu de ombros.— Às vezes.Então colocou a tampa colorida, gasta em um canto pelo uso frequente, de volta sobrea caixa.— Você gostaria de ganhar uma caixa de mágica no seu aniversário?— Falta muito?Mike olhou para o relógio.— Não em horas — disse Sanna.— Quinze dias — Mike respondeu. — No relógio diz que dia é hoje.— Mesmo?Mike lhe mostrou.— Os números no quadradinho mostram o dia. Hoje é 5 de maio, e o seu aniversário éno dia 20. Daqui a quinze dias.Sanna internalizou a informação sem se deixar impressionar muito. Relógios não erammais o símbolo de status que costumavam ser, pensou Mike.Ele não era muito mais velho que sua filha quando ele e seus pais se mudaram devolta para a Suécia. Eles disseram que estavam voltando para casa, embora a única casaque Mike conhecera fora em Fresno, uma fornalha de cidade na região central daCalifórnia, entre a cadeia Costeira e a serra Nevada. A temperatura se mantinha em tornode trinta a quarenta graus na maior parte do ano. Era quente demais para viver, e amaioria das pessoas pulava de casas com ar-condicionado para carros com arcondicionado,com os quais se dirigiam a escolas e locais de trabalho com ar-condicionado.Praticamente ninguém era bronzeado na Grande Sauna, como seus pais costumavamchamar o lugar, e Mike ficou chocado quando veio para Helsingborg, no verão de 1976, eviu todas aquelas pessoas morenas se divertindo na água, apesar de o ar estar frio, malchegando aos vinte e cinco graus.Os pais de Mike falavam sueco com ele desde pequeno, de modo que ele não tiveraproblemas com a língua, exceto pelo fato de que as pessoas frequentemente diziam queele soava como um americano. Elas achavam que ele falava cantado. Mike ficarahorrorizado de ter que voltar para a Suécia e depois ter o jeito como falava corrigido otempo inteiro.As crianças da sua idade que ele encontrara na praia no primeiro entardecer tinhamuma opinião diferente. Elas achavam que ele soava como Columbo e McCloud, os detetivesda série de TV. E Mike reconhecera no mesmo instante que isso não era nada mau.Tendo notado o garoto vestido de maneira estranha e exagerada perambulando por ali,as outras crianças haviam finalmente se aproximado dele e perguntado se ele queria jogarfutebol. Meia hora mais tarde, quando ele jogara o suficiente para começar a suar e tirar opulôver pesado, seus novos amigos descobriram o relógio de Mike, que não tinha ponteiros,mas mostrava as horas em números quadrados.O espanto foi extraordinário. A parte mais incrível era que o mesmo botão acumulavavárias funções. Se você o pressionasse uma vez, ele fazia uma coisa, se o pressionasseduas vezes, ele fazia outra. Mesmo sendo o mesmo botão. Ninguém entendia como elefuncionava.— O que você acha? — ele disse para a filha, trinta anos mais tarde. — Pronta?Sanna fez que sim.* * *Ylva Zetterberg estava consciente.Ela estava deitada no banco traseiro e via o mundo passar na forma de copas deárvores e telhados familiares. Reconhecia a geografia dos movimentos do carro, sabia otempo inteiro onde estavam.Ela estava quase em casa quando o carro reduziu a velocidade para dar passagem aoutro veículo e então dobrou no acesso de cascalho na frente da casa recém-reformada. Amulher abriu a porta da garagem com o controle remoto e entrou com o carro. Esperouaté que a porta se fechasse atrás deles antes de sair e abrir a porta traseira. Com omarido, conduziu Ylva escada abaixo até o porão sem dizer uma única palavra.O homem e a mulher deitaram Ylva em uma cama e a prenderam à armação comuma algema.O homem então pegou um controle remoto e o apontou para uma TV afixada logoabaixo do teto.— Você gosta de assistir — disse ele, e ligou o aparelho.

Não Voltarás (Hans Koppel)Onde histórias criam vida. Descubra agora