08 - Púrpura, turquesa e narciso

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25 de Junho de 2012

Querido Bernardo,

[...]

Quando meus tios estão em casa, eu me esforço para sorrir e interagir mais com eles. Pra que eles sintam que tá tudo bem comigo e não soar aquela visita mórbida. Mas hoje eu falhei e minha tia percebeu logo no café da manhã.

Então ela voltou do trabalho para almoçar em casa e me puxou para uma conversa meio séria na mesa. Ela foi delicada e gentil, não tenho muito do que reclamar. Mas, como falei, não queria ser esse tipo de visita. Naquela situação não teve jeito, tive que ser mais sincero e tentei descrever como me sentia.

Ela até chegou a ficar preocupada, mas apontou logo uma solução. Pediu que eu subisse pra me arrumar enquanto ela lavava a louça porque me levaria para algum lugar.

Confesso que quando entendi que a gente teria que sair de casa, dei uma resistida internamente. Mas ela jurou que era perto dali, somente algumas quadras e chegaríamos.

Caminhamos em silêncio até chegar numa casa com um quintal e planta bem parecida com a dos meus tios, mas com muito mais vegetação e cheiro de café passado na hora misturado com outras ervas fortes, chá, sei lá.

Uma senhora corcunda e bem velhinha recebeu a gente. Ela ficou muito feliz quando viu minha tia. E então me encarou meio feio. Depois ela se desculpou - não queria ter sido grosseira. Disse que foi porque eu estava com o quebranto estampado na cara.

Só aí entendi o que tínhamos ido fazer lá. E o que era essa senhora: uma benzedeira.

Não sei se sabe, mas os feiticeiros são muito mais ligados à medicina alternativa e natural. Antes de ir para um hospital, visitamos benzedeiras e curandeiros. Pra gente funciona muito bem. Esses feiticeiros são especializados em como equilibrar nossa aura com a natureza - se essa ligação não está em dia, adoecemos. E era o meu caso.

Quebranto é uma certa vulnerabilidade. Um estado mais cabisbaixo dos sentimentos que deixa nosso corpo aberto à muita praga ruim que está ao nosso redor. Tipo como uma imunidade fraca. Se tivesse algum bruxo me fazendo uma maracutaia, teria muito mais chances de eu ser atingido nesse estado. Ou se eu fosse um duelista, dificilmente conseguiria me defender de um ataque ou feitiço sem me machucar.

O problema é que quando o quebranto fica muito tempo com a gente, ficamos deprimidos. E no final das contas era assim que eu estava ficando. A benzedeira descreveu o quebranto como um tumor que se alimenta do nosso corpo e humor até sobrar pouca coisa.

A benzedeira tratou de mim. Primeiro me deu um chá - horrível, por sinal - e preparou o terreiro no fundo da casa para o ritual. Pediu para eu ficar descalço, me vendou e mandou caminhar sobre a terra.

Disse que estava quebrando o meu medo e limpando meu caminho passado. Porque eu precisava me deixar seguir em frente na cidade nova - e eu nem tinha falado com ela sobre isso, pra você ver! Ela disse algo sobre meu quebranto e meus sentimentos estarem me limitando demais, não deixando eu sair de casa, conhecer gente nova... Cirúrgica essa velha.

Enfim, ela ia riscando o chão com seu cajado as pegadas que eu deixava para trás na terra. E só parei quando ela pediu para eu ficar completamente imóvel.

Alguns segundos se passaram e eu continuei lá. Como eu não via nada, minha tia contou o que aconteceu naquele momento da benza: a senhora procurava meu quebranto pelas árvores. Ele estaria escondido perto de alguma raiz. Agora pequeno e frágil. Ela caminharia até ele e ofereceria misericórdia para que fosse embora e se tornasse bom - e isso dependeria totalmente dele. Talvez se agarraria em outro feiticeiro para deixá-lo doente, igual fez comigo. Eles são bem oportunistas.

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