Somos o que somos !

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Eu estava completamente imersa na obra de Thomas Hardy, cada palavra me prendendo mais profundamente na trama, quando senti uma presença. Não sei quanto tempo ele esteve ali, mas a sensação era de que seus olhos haviam me observado desde o início, em silêncio. Ontem, éramos apenas dois estranhos; agora, ele parecia uma sombra na névoa, envolvendo-me com sua presença inexplicável. Talvez a dor que ele carregava fosse muito mais profunda do que eu imaginava.

Fiz o possível para ignorar a parede de músculos e o olhar cinzento que me acompanhava, curioso, enquanto me refugiava nas palavras de Hardy.

— Perdão por interrompê-la, senhorita Dedrov. — Sua voz era calma, mas carregava um peso que eu não conseguia ignorar. — Não pude evitar notar sua presença aqui no jardim, tão absorvida em seu livro.

Levantei os olhos, tentando esconder a surpresa que sua proximidade me causava. Minha voz saiu tranquila, mas com uma hesitação que não consegui controlar.
— Oh, não se preocupe, senhor... Dylan. Pode me chamar de Hell, se preferir. Eu costumo perder a noção do tempo quando estou com um bom livro.

Havia algo em seu rosto que demonstrava desconcerto, como se meu nome fosse uma peça que ele ainda não conseguia encaixar. Não era a primeira vez que isso acontecia.

— Hell? — Ele repetiu, as sobrancelhas arqueadas em leve confusão. — Como... inferno? Perdão a curiosidade, mas é um nome curioso.

Sorri, mas havia um toque de ironia na minha resposta, uma espécie de resignação com o peso daquele nome.
— Hades.

Seu olhar vacilou por um momento, confuso.
— Desculpe, o quê...?

A surpresa em seu rosto era quase cômica, e eu tive que morder o lábio para não rir. Claro, o choque nunca falhava. "Obrigada, pai, por mais essa peculiaridade." Respirei fundo antes de explicar.
— Meu nome é Hades. Mas todos me chamam de Hell.

Ele piscou algumas vezes, como se tentasse processar a informação. Então, inclinou levemente a cabeça, e a surpresa deu lugar a algo mais curioso. Parecia querer mudar de assunto.

— E o que exatamente nesse livro te prende tanto? — Sua voz agora era mais suave, quase genuína, como se realmente quisesse entender.

Acariciei a capa do livro com os dedos, tomando um momento para escolher as palavras.
— É difícil explicar... Há algo na escrita de Hardy, na forma como ele captura a essência da vida, da paixão, do sofrimento humano... É como se ele tocasse em algo dentro de mim, algo que eu nem sabia que estava ali.

Ele me observou por um momento, a expressão séria suavizando enquanto inclinava levemente a cabeça.
— Interessante... — disse ele, com um tom que misturava admiração e reflexão. — Você tem uma maneira peculiar de se expressar, senhorita Dedrov. Há algo nas suas palavras... uma sinceridade que só quem já conheceu a dor poderia ter.

Minha pele esquentou, e desviei o olhar, corando levemente.
— Obrigada, senhor Dylan. É gentil da sua parte dizer isso. Eu só... leio muito.

Queria desaparecer naquele momento. Era exatamente isso que Hardy fazia comigo: conectava-me à dor, à melancolia que parecia sempre presente.

Ele inclinou-se um pouco para frente, como se buscasse encontrar meus olhos novamente.
— Talvez você tenha razão. Ou talvez não. Em um mundo onde todos usam máscaras, encontrar alguém como você, tão autêntica, é raro.

Suas palavras eram um elogio, mas, no fundo, havia um toque de tristeza nelas, como se falasse mais para si mesmo do que para mim.

Suspirei, tentando recuperar alguma compostura.
— Você é muito gentil, senhor Dylan. Mas acho que todos nós temos algo dentro de nós esperando para brilhar... ou talvez seja a escuridão. Afinal, até nela há beleza, não acha?

Ele me olhou com intensidade, o olhar cinzento agora parecendo quase opaco, como se carregasse uma tempestade.
— Talvez seja verdade. — Sua voz era baixa, quase um sussurro. — Mas poucos têm a coragem de deixar essa luz brilhar. Muitos de nós estamos tão quebrados por dentro que, no fim, já não resta mais nada.

Aquele último comentário me atingiu de um jeito inesperado. Não era uma afirmação genérica, mas algo profundamente pessoal. Ele falava de si mesmo, não havia dúvida.

Olhei para ele, intrigada. Dylan Greyson era uma figura envolta em mistério e rumores, conhecido por sua frieza e brutalidade. Mas, naquele momento, ele parecia mais humano do que qualquer coisa que eu pudesse imaginar.

Enquanto o vento gelado dançava entre os galhos das árvores, um silêncio cheio de significado pairou entre nós. Era quase palpável, como se algo invisível nos conectasse, algo que não ousávamos nomear.

Dizem que a dor é como um fio invisível, ligando almas quebradas. E, por um instante fugaz, me perguntei se aquela conexão, tão delicada e frágil, poderia trazer à tona algo que ambos havíamos perdido: um pouco de luz, mesmo em meio à escuridão.

Os medos de Dylan - Livro DoisOnde histórias criam vida. Descubra agora