Entrei correndo e chorando, passei por minha mãe que estava deitada no sofá da sala olhando o celular e fui direto pro meu quarto no primeiro andar. Enquanto eu passava minha mãe gritou:
- Gee-soon? Por que a pressa?
Ao ouvir a batida forte da porta do meu quarto ele veio atrás de mim. Eu tranquei a porta, mas dava pra me ouvir chorando enrolada nas minhas cobertas pela porta.
- Gee-soon aconteceu alguma coisa, fala comigo filha.
- Não aconteceu nada - tento falar apesar da voz de choro.
- Amor prometemos contar tudo uma a outra não importa o qual embaraçoso seja, lembra?
Momento historinha: Quando eu tinha doze anos eu acabei mijando na cama numa idade onde isso seria vergonhoso, eu virei o colchão ao contrario e escondi as cobertas num saco durante a noite pra que ninguém percebesse no dia seguinte. Funcionou durante a manhã e naquele dia eu tinha escola, eu jurei que ninguém fosse descobrir até eu voltar, mas quando eu cheguei em casa minha mãe estava lá e me perguntou do por quê de eu ter feito o que fiz. Eu entrei em desespero e comecei a chorar de vergonha. Nesse dia ela me fez prometer que nós sempre contaríamos as coisa uma pra outra não importa o qual vergonhoso fosse. Não me lembro dela ter feito algo que quebrasse a confiança que eu tenho nela e me fizesse quebrar a promessa.
Porém quando o tempo da minha transição chegou e tivemos que nos mudar. eu não contei que eu tentei apagar minha conexão com os meninos, no lugar dessa verdade eu falei que nós acabamos parando de nos falar naturalmente e essa foi a primeira coisa vergonhosa que não contei a eles, porque não queria ser obrigada a passar pelo possível trauma de eles me odiarem por ser trans. No final, tanto trabalho pra nada. Que coisa terrível.
Depois de uns 5 minutos de crise de choro eu abro a minha porta e tento explicar a situação pra minha mãe. Ela parece surpresa por me ver aflita por tal coisa, nós sempre fomos muito parecidas no sentido de não nos importarmos tanto com o que acham de nós. Eu só entendi que o motivo de não conseguir me conectar com as pessoas era por eu ser diferente de uma maneira boa por causa de minha, que me explicou sobre isso através das experiências dela. Nem eu entendo o motivo de eu ter tanto medo de ser descoberta por eles. Só sei que tenho.
- Sabe que não precisa ter medo de ser odiada né?- disse minha mãe - Mas eu entendo de onde veio esse sentimento. Durante a minha infância e adolescência no Brasil eu sempre fui uma menina muito desejada pela minha beleza, a popular que era desejada pelos meninos da escola e que era gostada pelas meninas também por ser simpática. Infelizmente já passei por situações de assedio sexual com parentes, mas por ser bastante comunicativa eu consegui evitar a situação e denunciar o culpado. Minha mãe que já tinha passado por coisa parecida me ensinou a identificar esse tipo de coisa. Ela e a parte da minha família que eu considero me protegeram dele, mas teve gente da família que defendeu ele, inclusive a mulher dele que é minha tia de sangue.
- Pareceu uma infância um pouco sofrida. - eu respondo.
- É só pra sempre te lembrar dos seus privilégios. - diz ela de uma maneira orgulhosa.
- Mas voltando ao assunto, eu tive poucos relacionamentos onde realmente me importei em não perder a pessoa, isso incluindo amizades. Seu pai é um deles, me entende tão bem que não consigo imaginar mais uma vida sem ele, ou se encontraria um pessoa igual o melhor que ele. Assim como você.
- Como eu? - perguntei.
- Sim.- ela respondeu - Já disse a mim mesma que te mataria se você se tornasse uma pessoa ruim em meio a todos esses privilégios da vida coreana, ainda mais sem por pressão pra você se tornar uma pessoa estudada ou boa pra sociedade, como os coreanos prezam tanto. Eu e seu pai só queríamos que você fosse boa e preparada pro mundo. Mas até que você cresceu bem, apesar de todos o desafios que tivemos que enfrentar juntas e separadas, acho que sou uma boa mãe. Concorda?
- Sim, acho que não teria entendido e me tornado muita coisa sem vocês dois. E sei que sou privilegiada por ter vocês dois e por viver bem a minha vida num mundo onde muitos não conseguem. Obrigada por ser minha mãe. - respondo.
- Owwwwnnnn, vem cá sua fofa. - diz ela lacrimejando e me abraçando.
- Mas acho que agora de um jeito ou de outro eu vô ter que passar pela possível retaliação transfóbica deles. Eu realmente não queria.
- Infelizmente faz parte minha filha, e se ficar demais pra você é só falar com a gente que decidimos juntos o que fazer. Se aqueles machos tocarem em você eu mando os dois de volta pra casa em caixões! - diz ela com firmeza.
- Hahahahahaha - rio descontraída, acho me que sinto melhor agora.
Essa conversa me ajudou de tantas formas, nem sei por que não falei sobre isso antes com ela. Como sempre nós acabamos achando uma forma de fazer as coisas, sempre foi assim, menos quando eu me afastei daqueles dois.
Quando meu pai chegou nós explicamos pra ele essa situação e ele achou absurdo a ideia dos dois serem transfóbicos comigo, por ter na memória a alegria dos meus dias com eles. Coisa que eu também pensei sobre, mas que pra mim pelo menos não me pareceu uma ideia que era mais forte que o meu medo. No final me pai reafirmou as palavras da minha mãe incluindo a parte do caixão hahaha. É eu tenho sorte de ter esses dois.
No dia seguinte.
Eu consegui dormir por conta das conversas com meus pais, mas isso não me impediu de acordar apreensiva. Me arrumei para sair e fui para a estação com meu pai, antes de descer no meu ponto meu pai diz "qualquer coisa liga pra gente ta?", é um clássico, juntei toda a coragem que eu ainda tinha e sai do metrô em direção ao meu destino.
E pra dizer a verdade não aconteceu nada do que eu esperava nesse dia. Pra começar que a Eun-ji falou que passou meu número pra eles, mas nada parece ter acontecido depois disso. Tivemos nosso primeiro trabalho em conjunto o que também foi uma surpresa, eu não vi os dois o dia todo, nem no horário de almoço. Nenhum encontro, nenhuma mensagem, nenhuma situação de violência como imaginei, é quase como se eles nunca tivessem existido.
That's suspicious, that's weird.
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A Borboleta Púrpura
RomanceHan Gee-soon está prestes a ir para a universidade N de Seul para ingressar no seu tão sonhado curso de design, mas está preocupada com a recepção por parte das pessoas da faculdade já que está diferente tanto em corpo quanto em documento, além de s...