Capítulo 2

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Olhos cegados pela escuridão.

Respira* Respira*.

Um cheiro de mofo e suor.

Respira* respira*.

O som de uma maldita goteira ensurdece.

Respira* respira*.

As costas doem. O rosto contorce de tanto chorar.

Respira* Respira*.

O gosto da mordaça era nojento, com a ânsia do vômito pinicando no fim da garganta.

Respira* Respira*.

Trançada por cordas pretas e correntes sujas. Contorcida pelo medo. Esquecida no porão. Um único pensamento vem à mente:

' Vou morrer '

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"Vrrrrrrrmmmm!" "Vrrrrrrrmmmm!"

A cama vibra como um despertador. Cassius estica o corpo e aperta um botão que a faz parar de vibrar. Ele vê o céu claro pela janela entreaberta. Já devia ser umas 7 da manhã.

Cassius levanta e veste a mesma roupa de sempre: camisa regata azul escura com touca e shorts pretos.

Depois, ele vai até a cabeceira da cama, onde estão os aparelhos auditivos. Ao lado deles há um retrato. Cassius e Kairo crianças na frente, e atrás, seus pais, Visconti e... Uma moça loira de cabelos encaracolados, iguais aos de Kairo. Ele pega o retrato e passa os dedos sobre a imagem dela.

- Sinto sua falta, mãe... - ele fala tristonho.

Ele guarda o retrato e sai do quarto. A casa de Visconti era bem decorada por dentro. No primeiro andar, havia uma cozinha, uma sala e a lavanderia. Subindo as escadas, havia os quartos. Vindo da cozinha, um cheiro de queimado se espalhava para a atmosfera. Cassius foi correndo ao sentir o aroma.

- O que você tá fazendo? - ele indaga com raiva.

- Ovos - Kairo responde sorrindo, segurando uma panela com cinzas que um dia foram ovos - Mas... Eu acho que passou um pouco do ponto.

- 'Um pouco'? Você carbonizou eles!

- Bem, pelo menos eu tentei.

Cassius tira a frigideira das mãos de Kairo e começa a despejar as cinzas no lixo.

- Eu tô com dó é da galinha desses ovos. Gastou energia, tempo, esforço só pra virarem pó.

- Mas agora não temos nada pra comer, isso era as únicas coisas que restavam na geladeira.

- Você tá de brincadeira - ele aperta o próprio nariz para aliviar a raiva - Eu vou lá na padaria comprar pão então, você pode fazer café?

- Ok!

- Mas vê se não estraga, hein! - Cassius coloca seus tênis azuis escuros e sai de casa.

A caminhada para a padaria é agradável, não é longe. Há poucas pessoas na rua. Uma moça de meia idade usa uma roupa psicodélica, caminhando com ela há cachorrinha minúscula usando óculos de sol.

'Velhinha', ele pensa.

-Vini! Saga só!- um moleque surge fazendo manobras.

-Nada mal, mas já tentou isso?!- ele empina a bicicleta dele.

Os dois rapazes morenos fazendo manobras de bicicleta pareciam prestes a ter um acidente. Ambos usavam roupas rasgadas e com furos, um careca e todo tatuado, 'Careca'. O outro tem um moicano, 'Maluco'. Irmãos talvez

- Ts! - Cassius faz um som de desgosto.

'Como eles podem ser felizes assim? O que eles têm que nós não?' Cassius olha para eles, sentindo uma sede por caos, querendo que os dois caiam e sofram. Ele quer que eles sintam o que ele sente. A dor, a dor que começou naquele dia, tantos anos atrás...

Segundo trimestre de 2034. O céu estava lindo, cheiro nostálgico de aniversário. Kairo estava ao lado, vestido de aniversariante, que nem Cassius. Havia um lindo bolo de morango e menta. Visconti e Elizabeth batiam palmas.

Era eufórico, alegre, perfeito, paz.

Mas então, aconteceu.

Tudo começou a tremer. As luzes piscar. Um sol ensurdecedor. Braços surgiram das sombras.

"O evento de 34", o evento dos Becos. "Cientistas" na Nova Zelândia abriram uma porta que não deveria ter sido aberta, um portal para o um lugar que era que nem o inferno. Tantos morreram, tantos desapareceram. Cassius perdeu tudo. Sua audição, seu irmão e sua mãe, perdidos nos Becos. E como na época Cassius ainda era ignorante, aquilo sumiu de sua mente. A informação que ele tinha um irmão e uma mãe foi deletada, mas a dor não. Era indescritível o tanto que ele sofria todos os santos dias.

Sentir a perda de alguém, mas não saber quem. Como sentir falta de algo que nunca teve. Os dias passavam, semanas, meses, anos, e não melhoravam. E para piorar, seu pai, a única coisa que lhe restava, nunca estava lá, ele ficava fora o dia todo naquele trabalho misterioso, um trabalho que só depois de anos, em 2038, Cassius conseguiu entender. Mas isso não muda o fato de que Cassius ficou sozinho por 4 anos, sem audição, sem seu irmão e sem os pais.

- Por que estou pensando nisso? - Cassius passa a mão no rosto tentando esquecer da própria amargura, até que... algo o surpreendeu - Um piano?

Enquanto ele andava, conseguia escutar alguém tocando piano dentro de uma casa.

- Não sabia que tinha um pianista na região... - então ele repara algo estranho, o que estão tocando não é uma música - Coisa estranha, hein.

Ele então adentra na padaria. O cheiro de pão assado ainda é remanescente. Há um pequeno rádio no balcão, tocando uma música enquanto uma mulher falava sobre o clima.

Aquela é a estação M.R., a "Mundial Radio", ou "Rádio Mundial" em português. A M.R. é uma estação que podia ser ouvida em qualquer local do globo que recebe o sinal. As tecnologias modernas conseguem se adequar à língua de chegada, por exemplo, estando na mesma estação, lá no Estados Unidas será tocado em inglês, e aqui, no Brasil, em português.

Há três clientes e uma moça de olhos puchados atrás do balcão com os pães.

Um dos clientes é branco e louro, faz Cassius lembrar de Kairo, mas ele era bem mais alto e deve ter uns 20 ou 22. Ele tomacafé preto e usa um cachecol que parecia caro. Ele também usa óculos, talvez só de leitura, pois estava lendo um livro, que na capa está escrito: " A voz de tudo,".

'Delicado', Cassius pensa.

Os outros dois clientes eram um casal. Uma moça bem escura tinha parte do cabelo coberto por um lenço amarelo florido.

- Eu estou falando, Romero, a Dona Jordânia viu a Dona Derivada traindo o Cóvis com o Vid, o do outro bairro! - ela falava de um jeito que parecia que iria morrer se não fofocar.

- Sei, Jô - ele respondia, mas parecia se concentrar apenas na comida.

A mesa deles estava cheia de pratos vazios, mas nenhum parecia ser da Jô. 'A Tegarela e o Gordão', Cassius pensou.

- Bom dia ao Pão e alegria, como posso te ajudar? - a moça atrás do balcão disse, de todos os sentimentos, alegria era a única que ela não tinha.

'Deprimida? Não, não, cansada'.

- Tá ouvindo?

-...

" Ela não viu os aparelhos? Ela é burra por acaso?"

Ele encheu os pulmões de ar, prestes a destruir ela, mas desiste no meio do caminho.

- 4 pães franceses, por favor - ele pede passando a mão no cabelo, sentindo-se constrangido.

- São 5 reais-novo - ela fala com o mesmo jeito de antes.

O real-novo foi uma tentativa de valorizar mais a moeda nacional, já que era absurdo as comparações com o exterior. Essa nova moeda foi implantada um ano antes do incidente dos becos, em 2033. Cada real-novo no início era uns 50 reais, agora já é tarde demais para comparar.

Cassius estica a mão no bolso e... nada. Ele coloca a mão no outro, nada.

- Não pode ser! - ele dá um tapa na própria testa e passa a mão no cabelo.

- Sem dinheiro? - a moça pergunta - Sem dinheiro, sem pão.

- Que droga! - ele puxa seus fios de cabelo - Eu já volto.

- Não precisa - uma figura surge por trás de Cassius, como uma sombra de tempestade, era o 'Delicado' - Eu pago.

- Hã... - Cassius trava na fala.

O 'Delicado' não parava de sorrir, mas não de uma maneira estranha, só... Agradável, e isso era estranho.

Ele estava perto demais de Cassius. O 'delicado' tinham olhos hipnotizantes cor de âmbar, como se puderem ler sua alma.

- Não precisa me pagar depois - a voz dele era tão leve e macia que parecia o vento falando, mas ao mesmo tempo, ele falava de um jeito como se fosse superior a todo mundo, e o pior era que parecia mesmo.

- Pera, eu...

- Não, não, só deixa eu fazer a boa ação do dia.

Ele fala se aproximando demais. Cassius reuca constrangido. É desconfortável a presença dele. Como se fosse Cassius não valece nada, como se ele fosse apenas uma peça de algo, não uma pessoa.

- A gente se vê por aí- ele falou indo em direção a entrada da padaria

- Espera! Qual o seu nome?

- Nome... Pode me chamar de Judas- ele estendeu a mão para cima ao sair da loja, dando tchau de costas
- Bye! Cassius.

E saiu da padaria sem mais nem menos, Cassius ainda imóvel.

- Sujeitinho estranho, hein - a moça do balcão comenta e se vira para Cassius- Tá, se você não vai consumir mais nada, peço que saia do estabelecimento, por favor.

- Uh.... Tá bom, então- ele pega a sacola de pãos e sai da loja.

Quando Cassius saiu da loja, não conseguiu achar Judas com os olhos, como se ele tivesse simplesmente evaporado após sair da padaria.

Cassius voltou andando em silêncio. Ele não viu mais ninguém durante seu trajeto, pensando apenas naquele sujeito estranho.

- Cheguei! - Cassius diz abrindo a porta de casa.

Kairo está sentado na mesa da cozinha, brincando com os talheres.

- Vi sua carteira na mesa, fiquei duvidando se tinha dinheiro sobrando nos bolsos.

- E não tinha, um cara estranho pagou pra mim.

Cassius vai até a mesa, e os dois começam a tomar café da manhã.

O pão ainda faz sons de estralo, como se tivesse acabado de sair do forno.

O café é amargo, Cassius gosta, mas Kairo teve que colocar muito leite para conseguir engolir.

- Você... - Cassius pergunta com vergonha - Você viu o pai saindo mais cedo?

Ele nega com a cabeça.

- Quando que ele vai entender? - Cassius bate na mesa.

- Deixa ele, Cassius.

- Por que? Tudo que a Lúcidus faz, tudo o que ela passa para os agentes, tudo é inútil! Primeiro essa tal música, eles nem explicaram o que é, só falaram que a gente tem que ir atrás de pessoas fazendo música que sejam ignorantes e que há páginas de partitura, e só. A gente nem sabe o que é a música ou o porquê de ser importante. E tem as missões do pai...

- Mas o que o pai está fazendo é importante - Kairo tenta defendê-lo.

- Ir todos os dias nos malditos becos? Não tem mais nada de bom lá.

- Mas foi assim que ele me salvou! - ele grita com o rosto avermelhado - Foi assim que ele me tirou dos Becos! E é por isso que ele vai continuar a voltar lá, para salvar a mãe!

- Ela está morta, Kairo! Ela já morreu, é impossível ela ainda estar viva nos Becos, já fazem 8 anos, e me dói ver ele voltar todo para aquele maldito lugar com a esperança de achar ela.

- Ela não está morta! Eu fiquei lá por 4 anos, e o pai estava certo em continuar indo, se não eu não estaria aqui hoje, então mesmo se você não acredite, ela está sim viva!

- Se você acha tanto isso, prova! Prova que ela está viva!

- Por que?! Por que você está agindo assim? Até parece que você quer que ela esteja mesmo morta!

Kairo se levanta fazendo sua cadeira cair; ele então começa a andar para longe com passos pesados de raiva.

- Não, espere! - Cassius fala, mas é inútil. Ele então olha uma foto, uma foto presa na porta da geladeira, uma foto da família toda unida e alegre - Droga!

Ele soca a parede frustrado e puxa seu cabelo, quase o arrancando.

Os sons pesados de Kairo entrando e trancando a porta de seu quarto deixam Cassius sozinho de novo.

Ele se vê naquela mesma situação de antes, de sozinho, deixado para trás.

Cadeiras vazias, sem nenhum carro na garagem.

'Por que nada muda? Está acontecendo o mesmo que antes".

Ele vidra os olhos no chão, como se estivesse congelados.

Ele aperta o punho. O cheiro de queimado dos ovos ainda persiste no ar. Deixando tudo ainda mais desagradável.

As luz do sol se move pela cozinha ao passar das horas. Algumas pessoas passaram pela rua. Um som alto de sirene passa de repente e se vai no mesmo instante. Latidos. O vento batendo nas folhas. O tic-tac do relógio vai e vem. O aparelho auditivo chiava as vezes e parava com o silêncio.

Cassius não se moverà. Ele respira devagar, sentindo o ar passar pelas narinas, faringe, laringe, traquéia, brônquios, bronquíolos, seu diafragma expandido, um segundo de silêncio e ar sai.

Ele olha de canto de olho e vê a mesma foto de antes. Algo pulsa pelo seu corpo, como uma memória, então ele respira mais uma vez e vai até as escadas.

Ele olha para fora da janela antes de subir. A poeira no ar se tornava mais visível ao entardecer. Era difícil ver as estrelas. As noites eram melancolicamente azuis.

Cassius sobe a escadaria passando a mão na parede.

Há 4 portas. Um sempre aberta, mas num a ninguém dentro. Um sempre aberta. E uma agira fechada, com alguém que voltou. E uma que leva ao banheiro.

- Você viu, Kairo? Passou uma mesquita aqui na frente - Cassius falou tentando puxar assunto enquanto senta no chão ao lado da porta fechada.

- Mesquita? - a voz de Kairo soava abafada através da porta trancada.

- É, o carro da polícia. Não é "mesquita" o nome do carro de polícia?

- Meu... não. Claro que não é, mesquita é outra coisa. Carro de polícia é "viatura".

- Ahhhhh tá, agora faz sentido o porque deles acharem estranho quando eu disse isso.

- Eles quem?

- Nada não. Mas e aí? Vai deixar eu entrar ou não.

- Tô pensando no caso.

- Kairo, eu... sou um idiota, não deveria ter dito aquelas coisas.

- Não, você tava certo. Eu e o pai somos burros por achar que ela ainda tá viva.

- Para com isso, eu pensava o mesmo sobre você, mas olha só, você está aqui?

- Você queria que eu não estivesse vivo?

- Não é isso que eu quis dizer.

- Sei.

O silêncio era gritante.

- Vai abrir ou não?

"Destranca*"

A porta abre lentamente.

Um quarto era revelado, iluminado pelo sol prestes a sucumbir pela escuridão. Havia uma estante ao lado da cama laranja. Quase todos os livros eram da mesma saga "Os contos não revelados de Bern Huge". Era a ficção favorita de Kairo.

Kairo estava deitado na cama, vendo o ventilador girar no teto.

- Ugh - Cassius se deita ao lado do irmão, mas de lados opostos.

- Você é um saco - Kairo reclama.

- Eu sei.

- Você acha que ele vai continuar procurando por ela?

- Olha, se falassem que a mãe estivesse em Júpiter, o pai iria atrás dela do mesmo jeito.

- É... Bem a cara dele.

Os dois sabiam o que Cassius quis dizer, mas era triste demais para qualquer um dos dois falar. O 'ir atrás' também significa que alguém seria deixado para trás. Deixar os dois para trás. Igual como aconteceu com Cassius, e que está acontecendo agora.

- E se a gente fugisse? Ele iria deixar de procurar ela e se importar mais com a gente.

- Não é uma ideia ruim. Mas pra onde você gostaria de ir?

- Europa.

- Europa? Por que não Ásia?

- Porque meu sonho é ver a torre do Big Bang, e esperar o relógio tocar e falar para alguém 'Hora do chá' e tomar um grande gole de chá quente.

- Você é estranho.

- E qual é o seu sonho?

- O meu... Acho que paz.

- Paz mundial?

- Não, paz no sentido de não ter mais nada a temer, sem nenhum problema, apenas sentir o vento correr pela pele, ver o sol nascer, sentir o cheiro do carvalho das árvores, ouvir...

- Entendo.

- Sei - Cassius dá um soco leve no ombro do irmão.

O ventilador assopra vento suavemente contra eles.

- Mas e aí, o que você acha que é dessa tal música? - Cassius fala enquanto se ajeita na cama.

- Bom, vendo sobre o que a Lúcidus disse, ela é algo muito importante e que foi separada de alguma forma, e a Lúcidus está procurando uma forma de juntar essas partes.

- Será que tem outros fora da Lúcidus que também estão procurando?

- Pelo desespero da Lúcidus sobre isso, com certeza sim. E eu acho que deve ser algum tipo de arma ou coisa do tipo.

- Uma arma? Como uma música seria uma arma?

- Sei lá, já tem tanta coisa estranha nesse mundo que uma música ser uma arma não parece ser algo surpreendente. Mas o que você acharia que é, que realmente seria uma música normal?

- Eu acho que faz mais sentido isso do que ser uma arma.

- Sei - Kairo sorri.

Cassius sorri de volta, mas logo para e se vira.

- Já é tarde- Kairo se levanta e vai até a janela para fecha-la.

Os postes mal iluminavam a rua, deixando-a ainda mais morta.

Um vislumbre de luz surge no horizonte, se aproximando. Era um carro. Desacelerando, ele estaciona na frente da casa de Visconti. O som do motor faz Cassius se levantar da cama.

-Que cedo, né?- ele comenta.

- É, ainda nem é 8 horas da tarde, será que aconteceu algo?- Cassius pergunta.

-Não sei, vamos lá ver.

Os dois então desceram aos degraus de madeira, mas antes de chegarem na porta da frente, algo chamou a atenção deles.

A Tv, que havia sido deixada ligada, estava passando algo interessante.

- "E está sendo confirmado hoje que no início do próximo mês acontecerá a maior exposição de arte do mundo no Reino Unido. A semana da história da arte. Com a exposição de artefatos, músicas, pinturas, artes de todos os cantos do mundo...."

A porta da frente é aberta pelo pai dos dois:

Nada. Ele apenas entrou em casa com os mesmo olhos de sempre. Olhos cansados.

-Tudo certo, pai?

Ele não respondeu, apenas foi para o segundo andar e ninguem falou mais nada naquele dia.





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