Meu corpo pesa e cada pálpebra tem uma tonelada.
De algum lugar na escuridão, sussurros ininteligíveis me alcançam — reconheço apenas que são mamãe e Rosa. Sinto o mindinho de Hector cruzado ao meu, mas não ouço a voz dele, então não sei se está dormindo ou nesse limbo incerto, como eu... Entre o odor de suor velho e xaropes, a brisa de morangos sopra o suave perfume de lima e cedro, denunciando outra presença — silenciosa e taciturna.
Quero me virar, abrir os olhos e perguntar ao papai o que está acontecendo, por que estão em meu quarto... na maioria das vezes em que ele e mamãe estiveram aqui juntos, uma tragédia tinha acontecido ou estava na eminência de acontecer — porque eu tinha feito algo e vieram cobrar uma justificativa que terminava em discussão, como em meus 14 anos. Não sei o que fiz agora para trazer os dois até aqui, mas a apreensão me impele a lutar contra meu próprio corpo com peso de chumbo.
É como tentar lutar contra uma paralisia... sendo que não estou paralisada. Pelo menos, não como estou acostumada. A força de meu corpo parece drenada. Quando me forço a contrair ao menos a mão esquerda, tentar atrair a atenção de papai, um latejar agudo sobe pelos braços e um pungente gosto agridoce inunda minha boca, misturando-se ao resquício amargo de algum xarope medicinal que não faço ideia de quando tomei.
A saliva se acumula mas a boca parece cheia de cinzas que não consigo cuspir.
Reconhecendo o gosto, me debato internamente.
É inútil, como sempre.
A respiração se torna rasa e pesada. Os batimentos, de acelerados pela apreensão, decaem vertiginosamente e erráticos. Mesmo deitada e de olhos pregados, sinto o mundo girando como água escoando em redemoinho pelo ralo da banheira.
Os sussurros, já ininteligíveis, se distanciam cada vez mais, se tornando zumbidos.
Nem acordei direito e já estou caindo numa submersão? Mas que mer-
Estou para alcançar aquela estrela distante na escuridão que, eu sei, me levará para junto de Axl, tão perto...
Alissa!, a voz trêmula de Hector chora. Duas, três...
Hesito. E, nessa hesitação, algo me fisga o centro do peito e me puxa num solavanco e meu corpo se ergue e senta...
Na cama?
Pisco, atordoada com a luz pálida da manhã. Por que estou no meu quarto? Como? Por que minha mão estendida dói e está enfaixada? O que-
Um soluço alto me sobressalta.
Antes que encontre a origem, mamãe já está diante de mim e me esmaga num abraço. Minha cabeça gira e o corpo congela.
O que está acontecendo? Por que mamãe chora dessa forma? A última e única vez em que chorou assim foi no velório...
Tão repentino quanto o abraço, ela me afasta pelos ombros e me encara com os lagos verdes transbordantes.
— O que aconteceu, Alissa? Por que foi para lá daquele jeito? Como...? — as palavras saem soluçadas.
Continuo piscando, ainda mais confusa ao vê-la com rosto avermelhado, os cabelos presos de qualquer forma e usando um roupão grosso por cima de uma camisola. Não sei o que dizer. Minha mente está como os retalhos que Alessor transformou minhas cortinas semanas atrás...
Alessor... olho ao redor, procurando.
Em vez do lintera negro, ao meu lado na cama bagunçada é Hector quem está sentado sobre as pernas, todo empacotado em agasalhos de lã e seus cabelos pretos parecem um ninho de esquilos brigões — e mais pálido e magro do que... ontem? Está com aquela expressão estranha, os olhos arregalados e os lábios — descorados e secos — tremulando, como quando faz força para não chorar.
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Tratado de Vidro - HIATUS
FantasyNa véspera de seus 18 anos, a princesa-herdeira de Thempesta, Alissa, descobre-se prometida em casamento por um tratado e recebe a inesperada proposta de fuga feita pelo herdeiro do reino vizinho. De repente, se vê presa no dilema de abandonar a fam...