Capítulo 23 - Malícia

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— Como está?

É a primeira pergunta de mamãe assim que termina o jantar. Ela e papai atravessam o salão até o canto que costumo ficar, no janelão perto da sala de jogos.

Lanço um olhar enviesado para Hector.

— Não perde tempo, né? — bufo. Ele encolhe os ombros, sem remorso. Antes que mamãe saia em defesa dele, emendo: — Estou ótima, como pode ver.

— Ele disse que desmaiou...

— Queda de pressão porque me levantei rápido.

— Mas isso nunca aconteceu...

— Também nunca fui tão estúpida de tentar ficar de pé logo ao acordar.

Mamãe exala um suspiro cansado.

Ela usa um vestido azul-crepúsculo pouco mais escuro do que o usado em minha lembrança — o que torna a passagem de tempo mais evidente. Embora mal seja perceptível que ela tem quase 46, por estar ótima e jovial, mamãe recuperou pouco do peso perdido durante a doença e luto de Alexander; antes, seu corpo era mais cheio e curvilíneo e o rosto, arredondado, como o de Annabella. Quanto ao papai, seus cabelos perderam o dourado tom solar, se tornando pálidos e opacos, e as olheiras tomaram o rosto sem cor.

Observando-os assim, não consigo reprimir o incômodo cutucão no peito. Estão bem mais cansados do que deveriam estar na idade que têm graças à Coroa sugando sua vitalidade... mas uma parcela disso se deve ao meu comportamento.

— Desculpa, não farei isso de novo, então não precisam se preocupar — murmuro, num único fôlego, desviando o olhar por ser covarde demais.

— ...

O silêncio se estende acima dos burburinhos da corte e do suspiro da brisa que acaricia minha cabeça...

De súbito, mamãe coloca a mão sobre minha testa e na dobra do pescoço.

Duas vezes.

— Que mer-

— Linguajar, Alissa! — mamãe censura rapidamente. Para papai, acrescenta: — A temperatura está normal.

Ignoro o risinho de Hector e faço uma careta para eles.

Como ela espera que socializar com as damas seja simples se até quando tento ser cortês com ela, mamãe já pensa que estou doente?

— Vocês não têm gente para ouvir hoje? — desconverso. — Que tal irem lá, mostrar como se socializa, antes que Thereezee pense que vieram me dar um sermão e venha se juntar à confraternização? Ah, olhem só... bem ali, não é a Condessa Cherisse? Parece querer falar com vocês, porque não para de olhar pra cá com a aquela cara amassada-

Alissa!

Ergo as sobrancelhas para o choque de mamãe.

— Menti? A cada ano que passa, ela se parece ainda mais com um mara-

— Isso não é algo que se diga e tampouco algo para se rir, Hector!

— Mas a senhora está quase rindo também... Não está? — replico, erguendo o olhar para papai, uma estátua de lábios inexistente de tão comprimidos ao lado de Hector, que tampa a boca e treme. Acho que o acesso de humor da década se esgotou no gabinete. — Podem rir do apelido ridículo que Hector me deu, mas eu não posso comentar que a cara amassada da condessa é amassada?

Mamãe de imediato controla a expressão, o tremor no canto dos lábios cessando, embora também esteja longe da pose majestosa.

— Não esqueça que precisa ser acessível e interagir com as pessoas. Além disso... por que estão nesse canto isolado? Não deveria estar conversando com as damas que divide a mesa, como sugeri?

Tratado de Vidro - HIATUSOnde histórias criam vida. Descubra agora