Sob o Véu do Inferno | RadioApple

Capítulo 05: Teias do Passado

A tarde era envolta em uma penumbra opressiva, como se as sombras do próprio hotel se agarrassem às paredes e móveis. O saguão, normalmente vibrante com a atividade dos pecadores e dos habitantes do inferno, agora parecia estar em um estado de quietude incomum. Lúcifer estava sentado em uma poltrona de veludo escuro, cujas bordas entalhadas lembravam intricados espinhos. Cada detalhe da mobília, dos quadros antigos nas paredes até o tapete macio sob seus pés, parecia refletir o peso de suas memórias.

Seus olhos carmesins, normalmente penetrantes e vivos, agora estavam opacos e perdidos em reflexões sombrias. Ele observava o movimento ao seu redor sem realmente ver, envolto em um véu de pensamentos que o transportava de volta ao passado. A poltrona era um refúgio desconfortável, onde cada curva e contorno parecia ecoar os momentos de dor e confronto que ele vivenciara com Lilith.

Enquanto os pecadores, alheios à sua angústia, participavam do exercício de confiança organizado por Charlie, suas vozes ressoavam no saguão como ecos distantes. Risadas ocasionalmente preenchiam o ar, contrastando com a quietude interna de Lúcifer. Ele se lembrava vividamente da discussão acalorada com Lilith, das palavras ásperas trocadas que deixaram cicatrizes emocionais profundas. Aquela data, marcando o aniversário de sua separação, servia como um lembrete doloroso de tudo o que perdera.

Cada sombria lembrança parecia ganhar vida na atmosfera do hotel, enquanto Lúcifer se via cercado não apenas pela presença física dos outros, mas também pelas sombras de suas próprias escolhas e arrependimentos.

Ele se recordava de um fragmento particularmente doloroso de uma das inúmeras discussões com Lilith, de como as palavras dela haviam cortado fundo.

⎯ Você está traindo tudo pelo qual lutamos! ⎯ gritou Lilith, suas palavras cortando o ar como navalhas. ⎯ O que aconteceu com o Lúcifer que eu conhecia? Aquele que queria dar uma segunda chance a esses pecadores?

⎯ Eles não merecem segundas chances! ⎯ retrucou Lúcifer, sua voz carregada de um desespero que ele não conseguia controlar. ⎯ Eles tiveram suas vidas para fazer as coisas certas e falharam. Este é o Inferno, Lilith. Não um campo de reabilitação!

A ironia da situação atual não passou despercebida. Ali estava ele, sentado no saguão do hotel, observando os pecadores em um exercício de confiança. A cena parecia uma cruel piada do destino. O que ele havia dito a Lilith agora retornava para assombrá-lo, enquanto ele testemunhava as tentativas de redenção promovidas por Charlie.

Enquanto os pecadores se abriam, expondo seus maiores medos e revelando partes de seus passados tortuosos, Lúcifer encontrava-se mergulhado em suas próprias memórias. Ele viu um pecador hesitante compartilhar seu medo de falhar novamente, lembrando-o de sua própria jornada no Paraíso antes da queda. Lembrou-se dos dias em que era conhecido como Lúcifer, o Portador da Luz, uma figura respeitada e admirada nos corredores celestiais.

Entre as lembranças mais vívidas, havia o momento fatídico em que ele e Lilith se conheceram. Naquele momento em questão, os jardins celestiais resplandeciam com cores vívidas e uma serenidade que só o Paraíso podia oferecer. Lúcifer caminhava entre as flores exuberantes e os riachos de águas cristalinas, seu olhar azul profundo captando cada detalhe da perfeição ao seu redor. Foi então que, entre os raios de luz dourada que atravessavam as folhagens, ele avistou Lilith.

No jardim celestial, onde a paz reinava e a luz dourada do Criador banhava tudo com sua serenidade, Lúcifer encontrou Lilith pela primeira vez. Ela estava afastada dos outros anjos, uma figura etérea entre as sombras dos ciprestes, seu rosto marcado por lágrimas silenciosas que traíam a paz aparente daquele lugar. Seus olhos, violetas como ametistas, refletiam uma tristeza profunda que contrastava com a beleza intocada ao seu redor.