Capítulo 1.

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Pete. Pete. Pete.

Repito o meu nome como se tivesse tentando memorizá-lo novamente. Talvez, eu realmente esteja. Ao olhar para o meu próprio reflexo no espelho, eu não me reconheço.

Claro, estou ciente de que a imagem quebrada sou eu: um garoto de lisos cabelos pretos semelhantes a uma morna madrugada, e de olhos castanhos claros, nos quais as lágrimas finalmente cessaram. Elas estão secas dentro do meu cerne magro repleto de nojentos hematomas esverdeados.

Giro a torneira enferrujada com uma das mãos ríspidas. Em seguida, ao sentir a água fria trilhando a minha pele pálida, eu enfio as duas e, com cuidado, removo o restante do sangue seco nos nós dos dedos. Eu queria, assim como o suor e os soluços, que o líquido viscoso descendo pelo ralo fosse meu. Mas não é; não me pertence. São somente marcas de um delito cometido.

Ainda me lembro do cheiro adocicado, do sentimento amargo, ao cravar a faca no abdômen e assisti à alma da minha vítima deixando o mundo mundano. Destarte, enquanto o espírito se juntava aos céus, o meu afundava numa vasta neblina, em que a única opção foi desaparecer como um covarde.

Bato os pulsos na pia e nenhum grito é liberado. O remorso do impacto não é nada comparado ao ácido corroendo a minha humanidade. Uma vez que, desde ontem, eu me tornei a porra de um assassino.

Ao fechar o registro, seco as mãos na calça jeans folgada e apanho a mochila suja nos meus pés. Devagar, abro o zíper e busco pelo meu celular. Desejo intensamente ligar para minha vovó e implorar por perdão. Contudo, com apenas um click no botão, o adeus nada agridoce será rastreado e serei encontrado. Deste modo, realizo a ação mais plausível e jogo na privada o aparelho e até mesmo o meu RG.

Agora, sou um daqueles procurados. Um criminoso sem a chance de voltar para casa, sozinho no banheiro de um posto de gasolina à beira estrada, cogitando em qual direção devo prosseguir. Isso se é que tem alguma…

Existe? Ou este é o meu trágico fim?

Matuto esse questionamento ao vislumbrar a minha identidade misturada no vômito grotesco. Dou descarga encarando o teto. A construção poderia desabar e acabar com essa maldita brincadeira.

Nada acontece.

Em suma, preciso seguir em frente.

Relutante, coloco uma das alças quase rasgada nos meus ombros tensionados e giro os calcanhares machucados. Necessito, urgentemente, sair desse canto minúsculo, antes do balconista achar que sucumbi no vaso e contatar a emergência.

Destranco a porta de madeira e uma suave melodia toca no corredor estreito. Consequentemente, movo-me pela curta extensão, arrumando o meu boné, e aproveito para escondê-lo com a touca do moletom preto. Sei que não é um disfarce excelente. Entretanto, em vista de ter invadido o meu quarto celeremente, não houve brecha suficiente para catar roupas decentes.

Não estava planejando matar ninguém, nem sobreviver a uma cena selvagem. Ou seja, não tenho cuecas limpas e meias quentinhas. O que é bom, sobra mais lugar para a minha Glock e também para comida.

Cabisbaixo, vagueio rumo às prateleiras meramente lotadas e calculo a quantidade de suprimentos. Muitos? Sim, muitos. Colho os diversos pacotes de salgadinhos, miojos e enlatados. Na geladeira, me sirvo das garrafas de água e latas de coca cola. O banco do passageiro do veículo “emprestado” servirá para os demais alimentos e bebidas.

Repleto de mercadorias nos braços, me encaminho até o balcão. O atendente me avalia com tanta preguiça, que, na má vontade, ele escaneia os produtos sem pressa nenhuma. E, no objetivo de não o xingar, fito a tela da televisão grudada nos tijolinhos marrons.

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