Capítulo 9

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– Fay... Já terminei! – A menina de sete anos exibia sua obra prima com orgulho para uma instrutora alheia à sua presença. A criança chamou novamente, agora ofendida com o descaso: – Faith!

Somente então a moça focou o olhar na figura emburrada à sua frente. Carla, uma de suas promessas do mundo artístico, chacoalhava a folha de papel sulfite contendo a pintura em guache ainda recente, mirando-a com os pequenos olhos acusadores.

– Você não gostou não foi? Odiou! – concluiu, fazendo menção de rasgar o desenho.

– Imagina! – a moça exclamou, distraindo-se com o gênio forte da jovem aprendiz. Imediatamente abriu um sorriso amistoso e segurou as mãos pequenas antes que danificassem o trabalho. – Ele está lindo! – Inclinou-se, segredou ao ouvido da pequena pintora: – Acredito que seja o mais bonito de todos.

– Também acho... – animada pelo tom conspirador, Carla aproveitou as cabeças próximas e sussurrou: – O da Bianca está horrível!... Ela não sabe pintar, Fay...

Rindo abertamente do comentário maldosamente precoce, Faith pediu que voltasse para seu lugar e iniciasse outra obra de arte. Quando a menina a obedeceu, feliz em ser a preferida da instrutora de artes, a moça olhou em volta. Apesar de vir de má vontade, às vezes, Faith gostava da ocupação. Distraia-se com a algazarra das crianças, além de receber um salário satisfatório para fazer o que mais gostava: desenhar e pintar.

A má vontade se dava pelas discordâncias do dia-a-dia, pelas pequenas brigas com a mãe e irmã quando ela desejava sumir daquele fim de mundo no qual vivia, entretanto sempre eram esquecidas tão logo estivesse diante de suas crianças.

Naquela tarde, contudo, a proximidade com seus futuros talentos não surtia o efeito desejado. Não conseguia esquecer a forma como fora tratada pelo padre Jonathan. A ambiguidade do comportamento do sacerdote a irritava, mas, depois de acalmada, nem assim conseguia deixar de desejá-lo. A imagem de um padre altivo, à mesa, não saiu de sua cabeça durante todo o restante da manhã em que visitou os poucos comerciantes de Sin Bay e a seguia até aquele momento.

Quando Carla a tirou do devaneio, estava justamente imaginando como ele ficaria lindo retratado em uma tela. Com certeza seria a versão masculina da Mona Lisa, com o sorriso tão enigmático quanto seu olhar penetrante e anil. Novamente presa na especulação artística, Faith imaginou que talvez o italiano ficasse mais bem retratado como a versão masculina de "O nascimento de Vênus" de Sandro Botticelli*. Seria algo como "O despertar de Apolo".

Sim, nunca o vira sequer sem camiseta, mas sua visão aguçada sabia reconhecer todas as formas ocultas e poderia dizer, sem sombra de dúvidas, que Jonathan De Ciello era um deus coberto com roupas mortais. Pelo menos fisicamente, pois no que se referia à suas ações, ele era tão comum e bipolar quanto qualquer frequentador dos consultórios psiquiátricos.

Obrigando-se a esquecer o padre, Faith se concentrou no aluno que se aproximava para exibir seu trabalho. Ela não pode deixar de se perguntar se o menino não entendera a proposta de passar para o papel o lugar onde viviam e tivesse acreditado que a pintura era para ser feita sobre ele próprio. Finalmente se distraindo com suas crianças, Faith mal percebeu o passar das horas. Quando chegou ao carro de seu pai, tudo o que desejava era correr para casa e tentar esquecer, definitivamente, a forma como fora tratada.

– Oi, Fay – ela ouviu a voz de Tyler sussurrada em seu ouvido. Depois de respirar profundamente se virou para encará-lo.

– Acaso agora monta acampamento ao redor de minha casa? – perguntou sem cumprimentá-lo.

– Como? – ele indagou, confuso.

– Não se faça de desentendido – ela sibilou, abrindo a porta da pick up, enraivecida. – Eu o vi essa manhã.

Enigma - Segredos & Mentiras [DEGUSTAÇÃO]Onde histórias criam vida. Descubra agora