Cap.1 - O Estranho

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Senti o cheiro primeiro. Algo como peixe podre, pólvora e suor. Em seguida, o som. O barulho de pessoas gritando coisas incoerentes, madeira contra madeira, passos e muita agitação. Minha cabeça latejava demais e quando tentei abrir os olhos, a luz me deixou ainda mais debilitada. Tentei levantar, só que não conseguia, tudo girava de um jeito enlouquecedor. Novamente ergui o corpo, indo devagar dessa vez, como uma criança que estava aprendendo a fazer as coisas ainda.

Quando abri os olhos, a cena que vi me deixou fascinada. Eram tantas pessoas diferentes! Umas tão altas, beirando os dois metros com facilidade, longos cabelos e uma pele muito clara, quase cinza. Outros eram o completo oposto, baixos, troncudos e com muito cabelo, de preencher todo o corpo. Em todos os anos de mar, os Rugnans eram os mais diferentes que tinha encontrado, a pele dura e escamosa.

Como aprendi a ser muito cautelosa, tentei me prender a fatos mais consistentes. Por exemplo, estávamos com certeza num píer, ancorados, o que explicava o barulho infernal. Esse barco era enorme, de madeira maciça e escura. No meio da confusão toda, percebi que um homem estava sentado me encarando fixamente.

Ele era muito alto! Tinha uma estrutura forte, com uma longa trança pendendo no ombro, de um preto parecido com o meu. Vestia uma túnica esquisita, que cobria suas pernas como um macacão largo e na cintura havia umas cordas de cobre que, provavelmente pela luz, parecia se mover. Ou talvez eu tenha batido a cabeça com força demais. A parte superior se prendia a apenas um pedaço de tecido que ia do meio do corpo até o ombro esquerdo, deixando seu torço basicamente exposto. Aquela fixação toda em mim começou a me incomodar, afinal, o que ele tanto olhava?

– Ei! – chamei o rapaz, a voz saiu grave e rouca, além de arder extremamente – pode me dizer onde estamos? – perguntei.

Devagar demais para o meu gosto, ele simplesmente respirou fundo, espreguiçou os longos braços e pernas para só depois levantar do banquinho que estava. Atrás dele havia uma garrafa verde com um líquido dentro. Se aproximando com cautela, ofereceu aquele troço para mim e, como não esbocei nenhuma reação, respirou fundo de novo, como se estivesse eternamente entediado.

– Você pode precisar disso – viu minha expressão de desconfiança e completou – é apenas água.

Não beberia nunca aquele líquido. Não o conhecia, não sabia onde estava e não ia arriscar ficar inconsciente. O choque passou tão rápido que só então notei o tom de voz dele. Era tão grave, que ressoava com vibrações, como um trovão. A memória me bateu com tanta força que perdi o ar. Segurei o couro da minha roupa com tanta força que os nós dos meus dedos ficaram brancos, meu peito subia e descia com rapidez o suficiente para me fazer suar frio, pensei que fosse desmaiar novamente.

– Você vem ou não? – perguntou o rapaz, oferecendo a mão.

Ignorei-o, mas confirmei que estaria perto com um breve aceno de cabeça. Fiquei em pé, ainda tonta e caminhei decididamente, um tanto trôpega, até a calçada da vila. Vamos lá, aquilo era uma cidade enorme! Homens, mulheres, crianças, baixos e gigantes passavam com galinhas, ovelhas, barris e tantas outras coisas que eu nunca tinha visto. Era uma confusão de gente por todos os lados, oferecendo bugigangas para comprar, fritando um pedaço de carne ou frango para vender.

O cheiro, ao contrário do que estava no barco que me salvou, era maravilhoso e fez minha barriga roncar de fome. Soltei um sorrisinho sem perceber, enquanto seguia o cara que estava me guiando. Algo me dizia que eu precisava escapar, mas como faria isso sem conhecer esse lugar? Além do mais, por onde ele passava, cumprimentava as pessoas, trocava abraços e afagos com crianças. Então, mesmo que eu fugisse, poderia ser facilmente pega.

Tinha total ciência da minha aparência e mesmo machucada do naufrágio, atraía os olhares. Meu corpo tinha curvas que muitas mulheres da minha aldeia invejavam, o cabelo comprido e preto que chegava cobrir toda a minhas costas. Diferente do meu pai, meus olhos eram de um mel quase amarelos e um volume lindo nos lábios que herdei da minha mãe, além da cor da pele, terroso, queimado pelo tempo exposto ao sol.

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