Lohren
Hoje faz exatamente cinquenta anos desde o ocorrido e finalmente tomei coragem de escrever essa carta...
Cara autora, sei que deve estar confusa com o envio repentino disto que, se está lendo, provavelmente já chegou em suas mãos.
Adoraria dizer que já nos vimos antes, ou que nos conhecemos de longa data, mas a verdade é bem mais complicada e misteriosa, tanto que não faria sentido explica-la aqui.
Algumas coisas apenas acontecem.
Mas basta saber que alguém sussurrou a mim sua paixão pelas histórias, e eu, simplesmente decidi sussurrar de volta o que tenho de mais valioso comigo, a minha história. Espero do fundo do meu pobre e velho coração que trate com o mesmo carinho as palavras aqui escritas como deve tratar seus livros e, principalmente, que não se esqueça delas tão cedo...
...
Meu nome é Lohren, Lohren Nyvdell, a velhice já bate em minha porta cobrando os longos anos que vivi, mas a verdade é que o tempo parou muito antes para mim, mais especificamente há cinquenta anos atrás, em uma manhã ensolarada de sábado, em plena primavera...
Desde que me conheço por gente nasci e cresci em um campo afastado das tentações da cidade moderna onde o trote dos cavalos ecoava sobre as ruas de granito.
Meu pai era um homem abastado, no que, talvez em suas palavras, poderia se dizer um fidalgo, mas alguns problemas, que até hoje desconheço, o obrigaram a se afastar da crescente metrópole levando nossa família a morar no campo onde um belíssimo rio de águas cristalinas corria perto de casa.
Da janela do meu quarto ainda consigo ver sua cor azul refletindo o dourado do sol...
Quando eu era menor, na minha tão inocente infância, costumava ir até lá para ficar brincando por horas a fio enquanto minha mãe, em suas delicadas toalhas de piquenique, se sentava para ler escondendo o rosto do sol com os enormes chapéus franceses que tanto amava.
Essa é a última memória de dias alegres que tive com ela.
Aos meus dez anos, vi o doce sorriso de minha mãe ir sumindo aos poucos do seu belíssimo rosto de traços europeus. A tristeza e as preocupação de algo que eu desconhecia nublavam seus olhos amendoados os tornando cada vez mais longínquos, até que, em meus dezesseis anos, ela parecia tão distante de mim quanto uma criada poderia ser de seus senhores, se limitando a responder qualquer pergunta de forma breve e sutil ao ponto de eu quase não a reconhecer mais como minha mãe.
Meu pai por outro lado era um homem alegre, de estatura baixa, bigodes brancos e uma calvície acentuada, no entanto, sua aparência gentil e o sorriso fácil ocultavam segredos amargos que ele mesmo parecia lutar para esconder, algo mais profundo e sombrio que, por algumas vezes, transparecia em seu temperamento explosivo quando estava ao telefone.
Eu não tive irmãos ou irmãs, nossos parentes moravam longe então raramente recebíamos visitas. Além de meu pai e minha mãe, uma empregada morava em uma pequena casinha aos fundos, mas eu só a via pela manhã varrendo a casa, preparando o café ou cuidando do almoço.
Antes eu tivesse tido alguém com quem brincar na minha infância, alguém que eu pudesse ter confidenciado meus segredos na mocidade e, principalmente agora em minha velhice, uma amizade sincera que eu pudesse desabafar as memorias que guardo comigo.
Mas isso não é digno de nota.
Continuemos...
Por volta dos meus dezessete anos, meu pai veio ainda pela manhã aos meus aposentos. Algo bem incomum já que ele sempre andava ocupado a essa hora do dia.
Com certo fascínio, vi quando suas mãos gorduchas me mostraram uma pequena gaiola com um canário.
Hoje, imagino que minha crescente solidão se fez tão perceptível ao ponto de meu próprio pai achar que eu precisasse de companhia.
E é com profunda tristeza que concordei com esse pensamento.
Me lembro perfeitamente da plumagem amarela, tão vibrante quanto os girassóis que nasciam no jardim, e no canto suave que sempre me enchiam de bons sentimentos trazendo uma alegria que, mesmo agora, não sou capaz de descrever.
Na época fiz questão de que meu pai também comprasse uma gaiola maior, na qual, todas as manhãs, eu colocava do lado de fora da janela do meu quarto me sentando em frente ao parapeito para vê-lo cantar.
Aqueles foram alguns dos meus dias mais felizes.
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A carta de Lohren
RomanceSonhar é comum, afinal, quem nunca sonhou? Mas e quando aquele sonho insiste em continuar vivo na sua memória e não some com o decorrer das horas? Ao contrário, vai te incomodando desde o momento que abre os olhos até o desjejum onde seu café esfria...